segunda-feira, 21 de junho de 2010

Deus chora no Sudão

Ser pastor de um rebanho sudanês é um privilégio e um peso, afirma o bispo da diocese de Tombura-Yambio, que em sua vida também conheceu o que significa ser refugiado.
O bispo mais jovem da Igreja Católica no Sudão, Dom Edward Hiiboro, está à frente de uma diocese muito grande, ainda que materialmente muito pobre, situada no sul do Sudão.
Segundo o último censo, há cerca de 2 milhões de pessoas nesta região. 900 mil delas são católicas. É uma diocese antiga: em 2011 fará 100 anos de cristianismo.
Esta região está isolada dos principais povoados e cidades de Sudão. A comunicação é muito difícil, o que contribui ao atraso do local, e um problema importante é constantemente enfrentado: a construção e reconstrução destes lugares.
O Sudão é o maior país do continente africano. Foi açoitado por uma extensa guerra civil por motivos de desigualdade racial e cultural.
Nesta entrevista, o bispo conta sua experiência de trabalhar e viver nos campos de refugiados, suas razões de esperança e suas metas para a comunidade de sua diocese.
ZENIT: O senhor também nasceu no sul do Sudão?
Dom Hiiboro: Sim, nasci no sul do Sudão. Logo após nascer, dois meses depois, houve um ataque em minha aldeia e mataram minha mãe. Fui criado por minha avó, que fugiu da guerra indo para a República do Congo.
Permaneci lá por nove anos. Cresci em um campo de refugiados. Voltei ao Sudão em 1972, após o acordo de paz de Addis Abeba, e continuei meus estudos, que foram novamente interrompidos pela guerra de 1983. Fugimos para Cartum, onde terminei meu seminário.
Sou um refugiado de todos os modos, uma pessoa deslocada, e sei o que significa sair do próprio país ou abandonar meu país sem ter absolutamente nada.
ZENIT: Como foi capaz de conservar sua fé até o fim ao longo deste difícil caminho?
Dom Hiiboro: Bem, tenho que ser grato à minha avó. Ela teve uma criação católica. Quando era pequeno, ensinou-me a rezar. Agora isso é um hábito para mim. Ela me recordava, dizendo: “Você rezou?”. Quando me levantava pela manhã, dizia: “agora temos de rezar. Temos de dar graças a Deus por estarmos vivos”. Aprendi ao longo de minha vida a ver Cristo em cada situação. E isso foi convertido no meu lema agora como bispo.
ZENIT: Qual é seu lema?
Dom Hiiboro: “Cristo realmente ressuscitou”. Cristo em todo seu sofrimento e após ser pregado na cruz, não permaneceu nela. Nem na tumba. Ele despertou, levantou-se e ressuscitou. Assim detrás de toda cruz está a vida. Cristo está ali, atrás, sob a tumba e sobre ela, está a vida. Por isso, sei que nossas dificuldades no Sudão, nossos problemas na diocese de Tombura-Yambio não terminarão, mas seremos ressuscitados. Chegaremos à vida, e vejo a vida ao final e essa é minha esperança, e assim acredito.
ZENIT: Foi uma grande mudança para o senhor, que até agora foi um acadêmico, converter-se de repente em bispo?
Dom Hiiboro: Sim. Eu acolhi minha nomeação como bispo com o coração inquieto, porque sempre quis dar destaque ao campo acadêmico. Gosto de ler e escrever. Acabei de publicar meu último livro: “Human Rights: The Church in Post-war Sudan”.
Quis avançar na escrita, e agora a possibilidade de ser bispo em uma grande diocese se apresenta aos meus planos e meus esforços, para construir um tipo de diocese que deveria ser. Mas sei que é Deus quem me chama a este trabalho, e é sua obra. É seu projeto e estou seguro que não me deixará sozinho. Estará comigo. Cuidará de mim e me dará pessoas maravilhosas, gente que crê em Deus. Vou trabalhar com eles, e eles me garantiram desde o momento de minha ordenação uma grande alegria, isso demonstrou que não estarei sozinho na hora de suportar a responsabilidade dessa diocese.
ZENIT: Em sua ordenação o senhor disse que a responsabilidade é um peso e um privilégio. Qual é o peso que tomou sobre si?
Dom Hiiboro: O peso é a cruz das pessoas; trabalhar com pessoas sob situações difíceis nas quais vivem a vida, a realidade da vida que meu povo experimenta, a possibilidade de construir a paz entre eles, a possibilidade de ter uma vida de acordo com plena dignidade, a possibilidade de levar à realidade seus direitos humanos e de ser filhos livres de Deus.
Sei que não é fácil; não é um caminho fácil. Sei que as coisas são difíceis. Posso ver e sentir isso. Para mim isso é um peso e, sobretudo, alcançar a paz no país, que em minha região é um pouco mais duradoura, mas é um privilégio porque sou um sacerdote. Sou católico. Sou cristão.
ZENIT: Por que é um privilégio em uma situação como esta?
Dom Hiiboro: É um privilégio porque sou capaz de realizar o projeto de Deus. É um privilégio falar em nome de Deus. É um privilégio trazer a Boa Nova da salvação para as pessoas que mais necessitam.
ZENIT: O povo está aberto a esta lição de salvação?
Dom Hiiboro: Sim, o que é interessante em minha diocese é que a princípio foi uma comunidade aristocrática. As pessoas tinham reis e escutavam seus reis.
Quando os cristãos chegaram, há 97 anos, o cristianismo substituiu este tipo de tendência a se aliar com os reis, e as pessoas abraçaram o cristianismo. Não se podia encontrar uma pessoa entre cinco que não mencionasse o nome de Deus.
Assim se pode ver que as pessoas amam seu Deus. Estão em relação com Deus. Pode-se ver em minha própria ordenação a grande alegria que era possível ver nas pessoas.
Ao viajar pelas paróquias pude ver a grande alegria que tinham por mim, o acolhimento foi grande, e também veio a presença da Sagrada Eucaristia, a frequência no acudir aos sacramentos e seu estilo de vida me animaram porque estão abertos à Boa Nova de Deus, e isso me estimula muito.
É verdade que me falta muito trabalho para fazer, mas vejo desta forma: a melhor e primeira coisa que tenho de fazer é aprofundar o processo de evangelização de meu povo. Eles conheceram a Deus. Eles têm de estar em casa com ele. Têm de experimentá-lo e se tornar a base para construir uma paz que dure.
Falei e insisti para que as pessoas coloquem Cristo o centro, sendo o fundamento do que fazem. Só se nos convertermos a ele, que é o autor da paz, poderemos ser capazes de construir a paz.
ZENIT: Quais desafios existem?
Dom Hiiboro: As pessoas se traumatizaram durante anos. Não experimentaram a paz. O único modo de alcançar algo que conhecem é por meio da violência. Por isso, para trazer a cultura da paz, é necessário um processo gradual. Tenho de ir lentamente. Tenho de estudar e encontrar porque sempre temos dificuldades para construir a paz.
Sabe, devido à guerra, muitas pessoas fugiram como refugiados para diferentes países, e todos voltaram com mentalidades diferentes. Temos muitos que se deslocaram como refugiados internos para outras zonas do país; todos voltaram com mentalidades diferentes, e temos pessoas que nunca saíram durante os tempos de guerra; estas pessoas também têm visões diferentes.
Agora, ao por toda estas pessoas juntas, o processo de integração não é fácil; na verdade é muito difícil. Mas temos de ir nos movendo ao passo de cada um destes grupos e dizer-lhes que temos uma meta em comum. Temos de alcançar o equilíbrio correto na construção da paz entre nós, aceitando todos e cada um de nós.
ZENIT: Pode nos falar um pouco de sua própria situação? O senhor também trabalha com os deslocados?
Dom Hiiboro: Sim, quando era estudante em Cartum, antes de minha ordenação e também quando tinha acabado de me ordenar, trabalhei com pessoas deslocadas. O arcebispo me enviou a um dos campos de refugiados chamado Jabel Aulia, na parte norte da cidade.
Fomos o primeiro grupo de pessoas que chegou ao campo de refugiados. A vida era muito dura. Era um deserto. E pude ver as mães cavando buracos na terra para manter seus filhos aquecidos. Era inverno. Fazia muito frio. Não havia muita coisa para comer.
A vida era dura e foi naquele momento que começamos a perder as crianças. As pessoas as sequestravam. Vinham fazer mingau de aveia e sequestravam as crianças. Tivemos de colocar alertas e informar das crianças perdidas.
Depois de um ano, levaram-me à República Centro-Africana, para ser reitor de um seminário menor em um campo de refugiados. Estive ali sete anos, e pude ver o quanto era difícil para as pessoas viverem longe de sua terra. A vida era difícil para os seminaristas no campo. Tínhamos de cultivar nossa própria comida para alimentar estes jovens, assim como as pessoas dessa região. Experimentei, portanto, a vida dos refugiados assim como das pessoas deslocadas.
ZENIT: Qual seria seu pedido?
Dom Hiiboro: Meus pedidos são três: peço amizade. Gostaria que visitassem minha diocese, e quero voluntários. Preciso de pessoas que venham para se unir com nós. Venham nos visitar, e todos aqueles que possam estar atentos para trabalhar conosco, seria algo grandioso.
O segundo pedido é: queria que vocês escolhessem um projeto que enfrentasse as emergências, que permitisse independência e autossuficiência para que as pessoas fossem capaz de cuidar de si mesmas. Estes desafios são muitos: saúde, educação e serviços sociais.
O terceiro pedido que gostaria de fazer é que continuasse se consolidando a paz no país. Não é um projeto fácil. É difícil. É delicado e pode se desfazer a qualquer momento. Estamos fazendo o que nos corresponde, mas necessitamos dos esforços de muitos de nossos amigos que estiveram conosco durante os temos de guerra e durante a época de enfrentamento, para que novamente seja garantida esta paz e que não se acabe, que se consolide.
Por isso estou muito agradecido. Sei que meu convite para que venham e meu pedido para que elejam algum projeto pode levar à independência e à autossuficiência. E que contribuam para o processo de consolidação da paz no país. Por isso lhes agradeço muito pela importante ajuda a nós dada no passado. Mantiveram-nos vivos.
Deus, eu diria, chora em Sudão, mas gostaríamos que sorrisse no Sudão.
* * *
Esta entrevista foi realizada por Marie-Pauline Meyer para “Deus Chora na Terra”, um programa rádio-televisivo semanal produzido por Catholic Radio and Television Network, (CRTN), em colaboração com a organização católica Ajuda à Igreja que Sofre.Mais informação em www.aisbrasil.org.br, www.fundacao-ais.pt

Nenhum comentário:

Postar um comentário