segunda-feira, 14 de junho de 2010

Medicina e Milagres

Os católicos estão acostumados a ouvir falar sobre milagres e pessoas que são curadas pela intercessão dos santos, mas a cultura materialista de hoje muitas vezes olha para isso com certo ceticismo.
O escritor britânico John Cornwell acabou de publicar, no final de maio, um livro sobre o cardeal John Henry Newman, e o Sunday Times deu, há pouco tempo, um amplo espaço para expressar dúvidas sobre a vericidade do milagre que o Vaticano aprovou como base para a beatificação de Newman no próximo mês de setembro.
Em seu artigo de 9 de maio, Cornwell indica que a documentação vaticana do milagre "entra no reino da linguagem medieval surpreendentemente obscura". Cornwell continua a levantar dúvidas sobre a seriedade médica da cura, não se esquecendo de acrescentar diversas críticas a Bento XVI.
Cornwell não está sozinho quando se trata de difamar o uso das curas milagrosas. No mês de dezembro de 2009, após o anúncio em Roma da aprovação do milagre para a canonização da irmã australiana Mary MacKillop, um especialista em medicina de Sydney, David Goldstein, expressava suas dúvidas. Em um artigo publicado em 22 de dezembro no jornal Australian, ele dizia que é impossível determinar se as melhoras dos quadros clínicos dos pacientes são resultado das orações.
O bispo anglicano de North Sydney, Glenn Davies, também se mostrava crítico, segundo uma reportagem do Australian a 24 de dezembro. "Quem pode provar que os milagres referidos foram verdadeiramente obra de Mary MacKillop?", perguntava o bispo Davies.
Felizmente, Jacalyn Duffin, uma doutora que ostenta a Cátedra Hannah de história da medicina na Queen's University de Ontário, Canadá, publicou no ano passado um manual para tratar estas e outras objeções. Em seu livro Medical Miracles, Doctors, Saints and Healing in the Mondern World (Milagres Médicos: Doutores, Santos e Cura no Mundo Moderno) (Oxford University Press), ela examina 1.400 milagres citados em canonizações desde 1588 até 1999.
Sua curiosidade por outros milagres foi despertada quando foi pedido que ela examinasse algumas mostras de tecido, que posteriormente soube que fazia parte de um processo de canonização. Ao receber como presente uma cópia da positio, documentação do milagre, Duffin se deu conta repentinamente de que deveriam existir tais registros para cada santo canonizado.
Durante diversas estâncias em Roma, investigou centenas destes registros. Duffin calcula que já investigou cerca de um terço de todos os milagres depositados nos arquivos vaticanos desde que se estabeleceram as regras que regem as canonizações em 1588.
Evidências
A nova regulamentação que forma parte das mudanças da Contra-Reforma requeria uma compilação cuidadosa das evidências e um exame minucioso do material dos peritos médicos e científicos. Paolo Zacchia (1584-1659) teve um importante papel na formulação das diretrizes, explica Duffin.
Em seus escritos, apresentava uma explicação dos diversos tipos de milagres e definia que, para que uma cura fosse considerada milagrosa, deveria ser de uma doença incurável e a recuperação deveria ser completa e instantânea. Duffin observa que os peritos médicos que trabalhavam para o Vaticano continuaram citando Zacchia até o início do século XX.
Alguns criticam que as curas físicas sejam base para declarar santos, mas Duffin comenta que a necessidade de evidências credíveis levava o processo de seleção até as curas porque podia haver testemunhos independentes, incluindo os médicos.
Ao longo do tempo houve mudanças em algumas modalidades do processo de canonização, mas considerando os registros dos últimos quatro séculos, Duffin declarou que estava impressionada com a notável estabilidade no compromisso com a ciência.
De fato, a Igreja sempre confiou em um ceticismo científico para provar a vericidade dos milagres. Nos registros dos milagres que Duffin examinou, descobriu que as autoridades religiosas se abstinham do julgamento da atividade sobrenatural até que se convencessem de que os peritos estavam preparados para qualificar os acontecimentos como inexplicáveis.
"A religião confia no melhor da sabedoria humana antes de se aventurar em um julgamento da doutrina inspirada", estabeleceu Duffin.
Um ponto que ela adiciona a esta relação entre religião e ciência é que era a religião quem tendia a estar mais cômoda, não o contrário.
Nos processos, alguns médicos mostravam seu desacordo, como se sua cooperação constituísse a uma traição a seu pacto com a ideia da medicina ocidental, que recusa a proposição de que as curas sejam de origem divina.
Duffin observa que, no século XIX, católicos e protestantes colocaram em questão se a ausência de uma explicação para cura significava verdadeiramente que o fato seria um milagre. Esse debate continua, acrescenta, como quando um de seus colegas lhe explicava que, ainda que não possamos saber a explicação natural, esta deve existir.
Duffin se opõe, contudo, que tal atitude não enfrenta verdadeiramente a questão mais crucial, quando se trata de milagres médicos. A atitude positivista, que rejeita aceitar os milagres, adota a postura de que se há algo maravilhoso, devemos rejeitá-lo como uma ilusão ou uma mentira, porque só existe o mundo natural. Tal confiança na explicação natural é, de fato, uma crença que mascara o fato, diz Duffin. Em outras palavras, afirmar que um milagre simplesmente não pode ocorrer não é mais racional e não menos ato de fé que a afirmação de que os milagres podem acontecer.
A diferença entre as posturas religiosas e positivistas residem na interpretação das evidências, comenta Duffin. O cânon médico está imerso em uma tradição antideísta, enquanto que para a religião devem-se esgotar todas as explicações científicas plausíveis, após a qual se está preparado para declarar um milagre.
Em ambas posturas se abandona o que é desconhecido, mas os observadores religiosos estão preparados para aceitar a atuação divina.
Conhecimento médico
Ainda que alguns possam rejeitar a possibilidade de intervenção divina, a Igreja Católica é certamente cuidadosa ao utilizar todos os recursos da medicina para eliminar qualquer explicação natural das curas. Em um dos capítulos do livro, Duffin examina a utilização do conhecimento médico no processo de canonização.
Para começar, o Vaticano não reconhece milagres de cura em pessoas que rejeitaram a medicina ortodoxa para confiar somente na fé. A intervenção dos médicos proporciona uma evidência médica que evita qualquer possível manipulação do caso em questão.
Nos estudos dos arquivos, Duffin encontrou que o predomínio dos testemunhos dos doutores aumentou com o tempo. Os arquivos que revisou mostravam que no século XVII era nomeada uma média de um médico por cada registro, mas só uma pequena proporção deles contribuía com testemunhos pessoalmente. Depois de 1700, contudo, quase um terço, ou mais, dos médicos mencionados em um registro proporcionavam em pessoa seu testemunho.
Na segunda metade do século XVII, as evidências dos médicos que tratavam de pacientes foi complementada com observadores médicos independentes. Em algumas ocasiões, o número de médicos peritos consultados aumentou até igualar ou ainda ultrapassar aos médicos que tratavam o paciente.
Duffin também destacou que a Igreja não confiava exclusivamente em médicos católicos. As investigações examinavam a fé de todos os testemunhos, incluindo dos médicos. Antes do século XX, a maioria dos milagres procediam de países europeus onde a maioria dos médicos eram católicos. Muitos, no entanto, admitiam que não praticavam de forma regular sua fé, e diversos deles ainda tinham sido excomungados. Ainda assim, nenhum foi desqualificado como testemunha.
Em tempos mais recentes, foram utilizados médicos que pertenciam a outras religiões, que abertamente não professavam religião alguma.
Finalmente, só se declara um milagre quando os médicos estão dispostos a admitir sua própria impossibilidade de conhecimento sobre como uma pessoa se recuperou, após a falha da melhor medicina científica. Algo difícil de ser admitido pela mentalidade contemporânea, orgulhosa por seu conhecimento, e pela ciência moderna.

Fonte: Zenit.

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