Dignitas personae vinte anos após Donum vitae. A ciência e a técnica prosseguem em seu avanço, que nem sempre e necessariamente comporta um avanço em termos humanos. O Magistério da Igreja analisa sempre com interesse as novas descobertas, invenções e aplicações tecnológicas; analisa-as de um ponto de vista ético, no horizonte do respeito e da promoção da dignidade da pessoa humana, cada ser humano em si.
Em 1987, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou a instrução intitulada “O respeito pela vida humana nascente e a dignidade da procriação”. Nesta, apresentava a posição do Magistério católico universal sobre as problemáticas éticas ligadas à aplicação das técnicas de reprodução assistida, então aplicadas em grande escala e com recurso de métodos de fecundação extra-corpórea há apenas dez anos.
Em dezembro de 2008, a mesma Congregação apresentou uma nova instrução, desta vez de título “Instruções sobre algumas questões de bioética”. Apesar da amplitude sugerida por este título, a temática é essencialmente a mesma da Donum vitae.
O novo texto se apresenta com um caráter de atualização, aprofundamento e esclarecimento. Atualização porque, no curso destes vinte anos, muitas novidades surgiram no âmbito da reprodução artificial e assuntos correlatos.
Algumas destas inovações já eram anunciadas nos anos oitenta, outras apenas mais tarde. Pense na crioconservação de embriões humanos, com todos os problemas éticos, psicológicos e sociais implicados. Pense nas tecnologias de diagnóstico pré-natal e na possível eliminação de embriões indesejados. Pense nas propostas de clonagem “terapêutica” ou ainda de congelar os ovócitos ou fazer diagnósticos nos próprios embriões. Um longo etcétera.
No que se refere aos valores em jogo, aos bens a serem protegidos e aos princípios éticos que podem iluminar o uso das novas tecnologias, não era preciso abrir novos caminhos.
Convinha, porém, afrontar explicitamente estas novas fronteiras. O Magistério da Igreja pretende ser dinâmico, propor a luz da razão e da fé para amparar os católicos e todos aqueles que se dispõem a ouvi-lo nos meandros antigos e novos, e frequentemente tortuosos, que se apresentam a nós.
O trabalho de aprofundamento é sempre incompleto. É sempre possível – e com frequência conveniente – ir além. Também neste sentido, o Magistério nos ampara e ilumina. A nova Instrução nos propõe uma avaliação mais articulada do status ontológico do embrião humano, com base nos ensinamentos anteriores, de cunho predominantemente ético. Trata-se, como sabemos, do ponto central e também do punctum dolens, de todas as disputas e posições referentes ao que a técnica é capaz de fazer com os embriões: desde sua produção até sua destruição, passando por sua seleção e manipulação. A iluminação teológica do problema, proposta na primeira parte, enriquece toda nossa compreensão da dignidade inviolável do ser humano que se encontra – como todos nós já nos encontramos um dia – nos primeiros momentos de sua existência e desenvolvimento.
Muitos esperavam por um serviço de esclarecimento sobre esta série de problemas éticos, sobre os quais ainda não se dispunha de um ensinamento magisterial claramente definido e sobre os quais as opiniões de diversos autores divergiam, mesmo entre aqueles que alegavam defender com sinceridade os valores promovidos pela doutrina católica.
Seria eticamente admissível a adoção pré-natal, única via disponível para dar oportunidade aos embriões humanos congelados ou abandonados a prosseguirem em sua existência? Quais intervenções artificiais podem ser consideradas “complementares” e não “substituitivas” ao ato conjugal em vista da assistência à procriação, à luz do ensinamento ofertado pelo Papa XII e sintetizado pela Donum vitae? Podem-se aceitar pesquisas que tenham como objetivo a obtenção de células-tronco do tipo embrionárias, mas que não envolvam a formação ou destruição de embriões humanos? É moralmente aceitável a utilização de medicamentos e tratamentos, tais como vacinas, obtidos a partir de estudos que lançam mão de material biológico de origem ilícita?
Sobre alguns destes dilemas, a Instrução oferece um discernimento claro e articulado – por exemplo, no que se refere ao uso de material biológico humano de origem ilícita.
Com relação às técnicas para obtenção de células-tronco pluripotenciais sem a produção de embriões, o texto convida à prudência, uma vez que ainda não está claro qual seria o status ontológico do resultado obtido. Sobre o tema das técnicas “complementares”, simplesmente se reitera a doutrina de Pio XII e da Donum vitae, sem aplicá-la à análise das técnicas em questão: a incorretamente denominada “inseminação artificial” e a GIFT (Transferência de Gametas para as Trompas). A propósito do debate relativo à adoção pré-natal, abriu-se nova discussão sobre a correta interpretação do texto da Instrução.
Após quase vinte anos de debates sobre o tema da adoção, a Santa Sé se manifestou expressamente a respeito. Se o fez da forma como fez, é por que há um motivo.
A instrução é parte integrante do assim chamado “Magistério ordinário”, ao qual devemos (e desejamos) dar aquele religiosum voluntatis et intellectus obsequium que nossa fé exige e que nos é lembrado no Concílio Vaticano II (GS, 25), conforme enfatizou oportunamente Dom Francisco Ladaria, secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, na ocasião da apresentação pública da Instrução. Este obsequium, no entanto, não implica em que não se deva esforçar para compreender melhor aquilo que o texto nos ensina, e eventualmente distinguir daquilo que o texto não nos ensina. E que não se deva também aprofundar, aplicar e defender a doutrina por ele oferecida.
* P. Gonzalo Miranda foi secretário operativo do Centro de Bioética da Universidade Católica do Sagrado Coração, em Roma, de 1993 a 2001. Em 2001, fundou a Faculdade de Bioética do Ateneu Pontifício Regina Apostolorum (APRA). De 2001 a 2006, foi decano da Faculdade de Bioética da mesma universidade. Professor titular de bioética e de teologia moral na APRA, é membro do Conselho Diretivo do Centro de Bioética da Universidade Católica do Sagrado Coração, membro da Federação Internacional dos Centros de Bioética de Inspiração Personalista (FIBIP) e membro da Federação Internacional de Faculdades de Medicina Católicas (AIFMC).
Fonte: Zenit.
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