terça-feira, 11 de agosto de 2009

Um simples padre de aldeia



Cardeal Odilo Scherer narra trajetória de São João Maria Vianney

Publicamos o artigo do arcebispo de São Paulo, cardeal Odilo Pedro Scherer, sobre São João Maria Vianney, difundido hoje pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
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A Igreja recorda o 150º aniversário da morte de São João Maria Vianney, o Cura de Ars, falecido em 4 de agosto de 1859. Para a maioria dos leitores, certamente, trata-se de um ilustre desconhecido. Então vamos situá-lo no tempo e no espaço: de fato, os “santos” católicos não são personagens imaginários nem produto da fantasia, mas pessoas reais e históricas.
Nasceu em 8 de maio de 1786, em Dardilly, ao norte de Lyon. Na França ouviam-se discursos inflamados por toda parte contra a burguesia e o regime absolutista, reclamando por uma nova ordem social e política; a Bastilha já balançava e a Revolução Francesa estava para explodir. Também contra o clero as invectivas eram virulentas: no velho regime, boa parte dele formava uma classe à parte e tinha muitos privilégios. A bem da verdade, porém, deve-se dizer que, na mesma época, na França, também floresciam por toda parte obras sociais suscitadas e mantidas pelo clero e pelas organizações da Igreja para o benefício do povo esquecido e explorado.
Nesse contexto, o jovem Vianney quis ser padre. Não era sem riscos, pois a vigilância da polícia revolucionária estava por toda parte. Durante vários anos, favoráveis e contrários à Revolução dividiam dolorosamente a Igreja; símbolos religiosos eram varridos dos espaços públicos por uma onda de intolerância religiosa, em nome do Estado laico instaurado pela Revolução; padres foram perseguidos, jogados na cadeia e também assassinados. Quando a paz voltou, Vianney, já com 20 anos, foi ser alfabetizado; queria estudar e na sua aldeia não havia escola. Teve sérias dificuldades nos estudos, sobretudo por causa do latim, matéria obrigatória para os estudos eclesiásticos e para o desempenho das funções sacerdotais. Já houve quem o descreveu como “burrinho”, talvez por desprezo, pois sem inteligência ele não era. Ao visitar sua humilde casa paroquial em Ars, ainda hoje existente, eu mesmo pude observar ali vários livros bem volumosos, que lhe pertenceram, sublinhados e anotados à margem. Eram até muitos para uma época em que os livros não eram abundantes nem acessíveis, como hoje.
Foi ordenado padre em 13 de agosto de 1815, com 29 anos de idade. Pouco mais tarde, o arcebispo de Lyon enviou-o para Ars, camponesa numa região de bons vinhos, como o Beaujolais... Não longe de lá, vê-se ainda o que sobrou da abadia beneditina de Cluny, importantíssimo na vida religiosa e civil da França durante vários séculos. Foi destruída no tempo da Revolução; depois, uma parte pequena foi reerguida, o resto continua em ruínas. Ars, com cerca de 370 habitantes, tinha fama de “terra sem Deus”, onde fé cristã e as práticas religiosas tinham caído no esquecimento. Muitos padres largaram o serviço da Igreja, trocando o altar pelas barricadas e o catecismo pelas baionetas; a mentalidade iluminista, o anti-clericalismo e os preconceitos contra a religião haviam lançado raízes também naqueles ermos distantes de Paris.
Ao ser nomeado, o Cura recebeu esta recomendação: “em Ars não há muito amor a Deus, mas o senhor o despertará!” Era como ser mandado ao deserto, para fazê-lo reflorir... O Cura não se deixou desanimar e acolheu o encargo como missão recebida de Deus, pondo-se logo a trabalhar. Visitava as famílias e as pessoas doentes, rezava muito, estava sempre na igreja, dentro da qual até instalou seu simples dormitório, celebrava as missas, atendia as confissões... No início, ficava praticamente sozinho; aos poucos, porém, o povo reconheceu nele um homem de Deus. Nos últimos anos de sua vida chegava a passar 16 horas por dia no confessionário. Seu modo de falar de Deus (le bon Dieu), sua fé límpida e a bondade no trato com todos chamaram a atenção. Seu amor pelos pobres era concreto: dava-lhes tudo, até suas roupas, e o dinheiro nem esquentava em suas mãos, mas era passado logo aos pobres. Em 1824, fundou a Casa da Providência, inicialmente, uma escola para meninas em geral e, em seguida, só para meninas abandonadas; nesta obra, Vianney conseguiu agregar a solidariedade de muitas pessoas.
A obscura aldeia de Ars, aos poucos, tornou-se conhecida em toda a região e até nos palácios de Paris. O povo chegava em peregrinações para ver e ouvir o humilde Cura. Eram pessoas simples e também instruídas, que não mediam sacrifícios para ouvirem suas pregações e conselhos, para receberem sua bênção, rezarem com ele... Outros famosos talvez ostentavam obras bem mais vistosas, faziam discursos eruditos, contavam com o poder do dinheiro e da força política. Ele não tinha nada disso para impressionar as massas. Por qual motivo, então, o povo o procurava? Por qual desejo esperavam horas e horas na fila para se confessarem com ele? Em 1830 passaram por Ars quase 30 mil pessoas, querendo encontrar o Cura; em 1840 começou a funcionar diariamente um serviço de diligências, que partiam diretamente de Lyon para Ars. Por que o povo queria ir para Ars? Para ver o quê?
Para alguns, a resposta a estas perguntas intrigantes pode ser ainda mais intrigante: para ver um simples padre de aldeia, que lhes falava do “bom Deus”. Sem milagres nem mistificações. Ele mesmo era um homem de Deus, que comunicava o fascínio do amor de Deus às pessoas e diante do qual até os pecadores mais empedernidos caíam de joelhos, pediam o perdão de seus pecados e recebiam a paz da consciência.
Por decisão de Bento XVI, Vianney é o patrono de todos os sacerdotes, comemorado cada ano no dia 4 de agosto. Ainda hoje, muitos padres, a exemplo do Cura de Ars, nos campos e nas metrópoles, gastam a vida falando do bom Deus e servindo aos irmãos. Foi pensando neles que escrevi este artigo.

Cardeal Odilo Pedro Scherer

Arcebispo de São Paulo

Fonte: Zenit.

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