domingo, 19 de julho de 2015

Francisco na América Latina: uma "viagem da alma"

Luis Badilla Morales, diretor do site Il Sismografo, é uma espécie de enciclopédia viva que fala com naturalidade de pontificados, documentos magisteriais, viagens e dinâmicas políticas. Seu portal, criado em 2009 em resposta ao "apelo" de Bento XVI, agrega artigos diários de mais de 7.000 fontes da imprensa digital, oferecendo uma resenha precisa de tudo o que diz respeito ao Vaticano e à Igreja no mundo. Como chileno e observador de assuntos vaticanos, seu testemunho é inestimável para analisar a recente visita de Francisco à América do Sul, mas também os desafios futuros como a viagem a Cuba e aos EUA, o Sínodo, o relacionamento com a mídia e política "geo-eclesial" de Bergoglio.


Resumindo em três palavras a viagem de oito dias de Francisco à América Latina, quais você usaria?

Dignidade, mudança e solidariedade. Ao analisar os textos do Santo Padre, a mensagem que ele deixou para as igrejas locais, em suma, é: "Vocês têm que acompanhar estes povos na mudança, porque está em jogo a dignidade das pessoas. E isto só pode ser feito se houver colaboração e solidariedade entre as partes".

Já foi significativa a escolha de visitar esses três países, que não são centrais na geopolítica mundial. Mais uma vez, a opção pelas periferias...

Eu chamei esta viagem do papa à América do Sul de "viagem da alma." Uma viagem, e isso é confirmado por fontes próximas dele, que é um projeto antigo, desde a eleição à Cátedra de Pedro, e que está ligada à experiência em Buenos Aires, quando, sendo provincial dos jesuítas, ele estabeleceu muitas relações sociais e humanas com os irmãos desses países, mandava pessoas para estudar no Equador, na Bolívia e no Paraguai, ou levava jesuítas já ordenados para Buenos Aires. O papa também quis identificar as periferias mais frágeis da América Latina, que já em si mesma é uma grande "periferia". E escolheu esse estranho corredor que vai do Pacífico até quase o Atlântico porque acredita que é “a periferia da periferia”: países frágeis, esmagados tanto como povos quanto como igrejas, ao sul pela Argentina e pelo Chile e ao norte pelo Brasil, Venezuela e Colômbia. Ele aplicou o mesmo esquema usado na Europa, onde visitou primeiro a Bósnia e a Albânia, em linha com as suas escolhas geo-eclesiais. Porque o papa tem uma política geo-eclesial: ele usa as viagens, o "magistério itinerante", como parte do magistério pontifício.

Nas três etapas desta viagem, pudemos observar um papa sereno, que tomou “uma lufada de ar fresco” de certos limites “romanos”, trazendo à tona a sua verdadeira alma. Especialmente no Paraguai, sem a sombra de duas presenças fortes como Correa e Morales... O que você acha disso?

É verdade, e há muitas razões. Eu vou mencionar apenas duas. A primeira é que ele se sentiu "em casa", retornando ao seu povo, à sua cultura, à sua história. E isso também foi notável fisicamente: ele não sentiu o cansaço, não descansou na nunciatura, mas continuou encontrando pessoas... A segunda razão foi o fato de poder se expressar na sua própria língua, um aspecto fundamental para se fazer entender bem. Porque a língua não é um conjunto de sons, é uma estrutura de pensamento: quem fala alemão pensa em alemão, quem fala italiano pensa em italiano. Em sua própria língua, Francisco pôde dar o máximo. E nós admiramos um papa que nos explicou infinitamente melhor o que é o seu magistério. Muitas coisas que pareciam um pouco enigmáticas, pouco claras, agora estão todas na mesa.

 Você acredita que o papa vai ter a mesma atitude “confortável” também na viagem de setembro a Cuba e aos EUA?

Certamente, porque a viagem à América do Sul é a primeira parte de um périplo americano. Ainda não podemos decifrar completamente o magistério do papa Francisco até esta “segunda parte” em Cuba, Washington, Nova Iorque e Filadélfia. Só então teremos uma visão geral e integrada de todos os elementos. Na peregrinação pela América Latina, já houve muitas prévias da próxima viagem: estilo, temas, dinâmicas e prioridades. Claro que, sendo situações diferentes, o papa vai se adaptar.

 Então podemos ver uma continuidade entre os pobres do Bañado Norte e as potências das Nações Unidas? O que liga as duas viagens?

O papa sempre disse que "vemos melhor o centro a partir da periferia". Depois de observar o seu olhar a partir da periferia, podemos entender melhor como ele olhará o centro hegemônico dos Estados Unidos. Eu acho que a visita do papa a Cuba e aos Estados Unidos dá fim à Guerra Fria nas Américas, que só vai terminar quando for possível a convivência pacífica. A relação dos Estados Unidos com Cuba poluía o relacionamento com o resto da América Latina. A presença do papa vai selar o "degelo", que põe fim a este conflito que ainda não tinha acabado.

 O papa contribuiu ativamente para esse degelo, embora ele diga que "só rezou"...

Isso faz parte da modéstia dele. O papel do papa neste processo de paz foi confirmado pelos próprios presidentes Obama e Castro. E nós acreditamos.

 Voltando para a América Latina. Foram muitas as palavras fortes pronunciadas pelo papa durante a viagem de oito dias: "colonização ideológica", "sistema dominado pelo dinheiro", "economia que mata". Denúncias já manifestadas em várias ocasiões. Nesses países, quais podem ser as consequências, especialmente do ponto de vista político?

Dos discursos do papa surgem dois elementos claros. Em primeiro lugar, uma grande confiança no papel protagonista dos povos; segundo: certa falta de confiança na política. O Santo Padre deseja que os povos assumam como iniciativa própria o resgate social, especialmente os povos marginalizados, sujeitos à injustiça social. Tudo sempre no horizonte da defesa da sua dignidade, porque, como dizia João Paulo II,"os direitos humanos são os direitos de Deus". No segundo caso, o papa vê que os políticos parecem não notar a grande crise de civilização que caracteriza o presente momento; eles têm uma capacidade de reação superficial e lenta. É por isso que, na viagem, ele falou frequentemente da "urgência da mudança": no sentido de que não basta mudar, tem que mudar rápido. Na Laudato Si’, ele diz que temos de mudar quando é preciso, porque talvez haja uma boa solução no futuro, mas, por enquanto, está tudo despedaçado. Para o papa, é melhor um povo que quer agir. Daí a expressão "fazer bagunça", no sentido de "agitar as águas", não deixá-las apodrecer. E na América Latina, ele acrescentou: "fazer bagunça", mas "de forma organizada", isto é, não pelo prazer de criar o caos, mas agilizar as coisas com ordem para evitar o fracasso total.

 Esta, então, é a "revolução bergogliana"?

Não, a revolução de Bergoglio parte de um ponto exato que é o encontro pessoal com Cristo, porque, encontrando Cristo, você se torna irmão e não pode mais deixar de ajudar o próximo. E a Igreja existe e serve para anunciar esta mensagem. Eu sei que isso incomoda um pouco, porque alguns gostariam de uma Igreja "empoeirada", encerrada no meio dos livros e na sacristia. A revolução de Bergoglio é a de uma "Igreja de saída", que complementa João XXIII quando ele convocou o Vaticano II para abrir as janelas e renovar o ar. Depois de 50 anos, Francisco diz que "isso não é suficiente: ela também tem que abrir as portas e sair". Ele disse inclusive que é "melhor uma Igreja que tropeça do que uma Igreja escondida". Então eu vejo neste papa uma maneira de fechar o círculo. No fim das contas, não é nada de novo, porque é o que o cristianismo sempre pregou – mas que durante muito tempo nós esquecemos.

 Nesses eventuais "tropeços", podemos incluir certas discussões do Sínodo?

Eu acho que uma hermenêutica para o Sínodo são as catequeses das quartas-feiras, sobre a família, que continuarão até outubro. O papa Francisco está antecipando muito da próxima assembleia e fazendo uma releitura do Sínodo passado, com todas aquelas discussões (em grande parte midiáticas). O papa tenta mostrar que a Igreja não tem medo de nenhuma situação, não há nada que seja tabu ou de que ela se sinta distante. Ele gostaria de um Sínodo que não excluísse nenhum tema, que os tratasse com absoluta liberdade, convencido de que a postura pastoral é a misericórdia total e absoluta. Até porque não é bom que a Igreja continue tendo atitudes arcaicas, obsoletas ou inadequadas às necessidades urgentes do momento.

Então é verdade, como disseram alguns críticos em outubro passado, que a Igreja de Francisco baixa o nível de compromisso?

Não. Na verdade, eu acredito que a Igreja de Francisco eleva ao máximo o compromisso, respeitando, naturalmente, a dialética da comunidade eclesial. Porque não há nada em jogo que possa minar a doutrina: a questão é puramente "pastoral". Ou, em linguagem bergogliana, é a "carícia de Cristo" para todos, especialmente para aqueles que sofrem. E você pode sofrer também dentro da Igreja.

 Uma última pergunta, quase uma curiosidade. Você cuida, no Il Sismografo, de uma resenha diária completa das atividades do Santo Padre. Que ressonância teve nos meios de comunicação a viagem à América do Sul? A única notícia não foi só o crucifixo de Evo Morales?

Há uma percepção errada e insuficiente. Podemos dizer o contrário e também documentá-lo, porque monitoramos 7.000 sites, 24 horas por dia. Muito antes da viagem, a imprensa dedicava um espaço enorme à peregrinação do Santo Padre. Em alguns dias, identificamos mais de 16 mil textos em 5 línguas, com média constante de 12 mil. Basta pensar que o New York Times acompanhou a visita papal ao vivo via WhatsApp. Eu acho que, depois dessa etapa na América Latina, os meios de comunicação descobriram um novo Bergoglio, ou pelo menos o estão vendo de forma diferente. Há um salto qualitativo nas relações com a imprensa, especialmente com a mídia laica.

Fonte: Zenit.

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