A próxima visita apostólica de Bento XVI a Chipre, que inicia amanhã, será uma de suas viagens de maior teor político, segundo o especialista em história cipriota e direito internacional Alfred-Maurice de Zayas, professor da Geneva School of Diplomacy and International Relations.
Em entrevista concedida a ZENIT, o professor Zayas discute a questão de Chipre e as repercussões políticas da próxima visita apostólica.
O Santo Padre pretende se reunir com o arcebispo Crisóstomo II, líder da Igreja Ortodoxa Cipriota. O bispo metropolitano ortodoxo Atanasio de Limassol expressou, em um artigo no jornal Phileleftheros, sua expectativa de que a visita de Bento XVI aborde as grandes questões nacionais desta ilha de maioria ortodoxa.
A Igreja Ortodoxa de Chipre é autocéfala, isto é, autogovernada, desde o século V, quando, após o Concílio de Éfeso, o Patriarcado de Antioquia se declarou independente.
Sua fundação é mencionada na Bíblia, nos Atos dos Apóstolos (13, 4-13). No ano 45, o apóstolo Paulo, acompanhado por Barnabé e Marcos o Evangelista, chegou a Salamina e seguiu para Paphos, local que Bento XVI também visitará.
O êxito desta missão fez de Chipre o primeiro país com um governo cristão, pois seu pro-cônsul à época, Sérgio Paulo, foi o primeiro funcionário Romano a se converter ao cristianismo.
Muito mais tarde, quando reis católicos assumiram o trono de Chipre, a hierarquia ortodoxa passou a ser oprimida, até 1571, quando o Império Otomano conquistou a ilha e fez da Igreja Ortodoxa a única igreja cristã legal.
A partir do século XVII, a hierarquia ortodoxa passou também a ter liderança política entre os cristãos de Chipre, arrecadando impostos para o império e exercendo funções administrativas. O arcebispo de Chipre ocupava também o cargo de "etnarca", líder do povo.
No século XX, a igreja desta ilha do Mediterrâneo oriental esteve fortemente envolvida na política leiga do país.
O primeiro presidente da República de Chipre foi o arcebispo Makarios III, um dos antecessores do atual líder da Igreja de Chipre, Crisóstomo II. Foi sua atuação diplomática que abriu caminho para a independência. Resistiu ao regime militar grego (1967 - 1974), que pretendia se estender a Chipre. Com isso, Atenas instigou uma revolta contra seu governo, que acabou por servir de pretexto para a invasão pela Turquia.
Nesta entrevista, Zayas explica como o impasse com a Turquia segue sem solução e permanece sendo causa de instabilidade política no país que receberá Bento XVI.
- Bento XVI viajará a Chipre na sexta-feira, onde permanecerá até a noite de domingo. De acordo com o programa divulgado, não está prevista uma visita à parte norte da ilha. Como o senhor vê esta decisão, do ponto de vista do direito internacional?
- Zayas: O Papa Bento XVI daria um sinal equivocado caso visitasse o norte da ilha de Chipre. A Turquia invadiu ilegalmente o país em 1974, ocupando 37% de seu território. Transcorridos 36 anos, a Turquia continua ocupando o norte de Chipre, violando a Carta das Nações Unidas e numerosas resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral da ONU, buscando evadir-se de suas responsabilidades mediante a criação de um Estado fantoche controlado pelo governo turco, a autoproclamada República do Norte de Chipre (RTNC), entidade que não é reconhecida por nenhum outro Estado além da Turquia, e que foi declarado ilegal pelo Conselho de Segurança.
Em 1974, a Turquia expulsou 200 mil cristãos cipriotas do norte de Chipre, em violação à 4ª Convenção de Genebra de 1949 e ao Convênio Europeu de Direitos Humanos (CEDH).
Enquanto a Turquia insistir em ignorar as resoluções da ONU e as sentenças do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, seria um erro conceder reconhecimento à RTNC, ainda que indireto, através de uma visita oficial por parte do Vaticano.
- Em 24 de abril de 2004, três quartos da população da República de Chipre votou contra o assim chamado plano Annan, pelo qual as Nações Unidas tentavam resolver o impasse na ilha. Quais as razões dos cipriotas gregos para rejeitar a proposta?
- Zayas: Annan tinha muito pouco a ver com a proposta que levava seu nome. Este plano, profundamente defeituoso, não foi produto de negociações democráticas junto ao povo cipriota, mas uma imposição vinda de cima, que refletia os interesses de alguns países, particularmente a Grã-Bretanha e a Turquia.
À luz do direito internacional, o plano violava o princípio da livre determinação e as inúmeras resoluções do Conselho de Segurança da ONU e da Assembleia Geral.
Teria sido verdadeiramente surpreendente se os cipriotas gregos tivessem aceitado um plano que, essencialmente, anulava todas as resoluções anteriores da ONU e aceitava a invasão ilegal da Turquia de 1974.
O "plano", além disso, não previa a aplicação das sentenças do TEDH, o direito dos cipriotas gregos expulsos de voltarem à sua região de origem, o direito à plena restituição e à compensação, uma vez que autorizava a permanência em Chipre de grande parte dos 130 mil colonos ilegais turcos, violando o artigo 49 (6) da Quarta Convenção de Genebra de 1949.
- Monumentos eclesiais, cemitérios e mosteiros na área norte da ilha foram danificados pelas forças de ocupação turcas, e valiosas relíquias arqueológicas e sacras foram vendidas ilegalmente. Há possibilidade de reparação?
- Zaya: Graças à atuação da Interpol, uma série de mosaicos e outros artefatos roubados de igrejas e mosteiros foram encontrados e devolvidos à República de Chipre.
De acordo com o direito internacional e diversas convenções e declarações da UNESCO, o patrimônio cultural de um povo deve ser protegido, e, em caso de destruição, deve ser paga uma indenização.
- O ingresso à União Europeia, em março de 2004, conduziu a melhorias na situação?
- Zayas: Acho que não. Ainda que Chipre seja membro da União Europeia, permanece sujeito às pressões políticas da Grã-Bretanha e de outros Estados com interesses em Chipre.
É desconcertante que a União Europeia tenha iniciado negociações com a Turquia sobre sua possível adesão ao bloco, sem exigir que fossem aplicadas as sentenças do TEDH referentes à situação de Chipre.
- O senhor também tem experiência em questões referentes à proteção de minorias e grupos étnicos. Bento XVI se encontrará com representantes da pequena comunidade maronita de Chipre. Sua identidade cultural e seu idioma, o árabe cipriota, estão em grave perigo. O povoado de Kormakitis, na região norte da ilha, de onde a maioria dos maronitas foi expulsa, era um centro deste dialeto. Como esta cultura pode ser resgatada?
- Zayas: O artigo 27 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1996 assegura os direitos das minorias e obriga os Estados a proteger sua cultura.
Isto implica na necessidade de uma ação afirmativa. Se aplicada adequadamente, a Convenção da UNESCO sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Experiências Culturais de 2005 e a Carta Europeia de Línguas Regionais ou Minoritárias de 1992 proporcionariam a proteção necessária.
Em última análise, trata-se de uma questão de vontade política e de mecanismos de implementação.
A Igreja pode desempenhar um papel importante ao dar voz à minoria maronita.
Fonte: Zenit.
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