terça-feira, 20 de outubro de 2015

Papa Francisco: “O Card. Martini não teve medo dos protestos e incentivou a Igreja ‘em saída’”

Francisco não tem dúvidas: "A herança que nos deixou o cardeal Martini é um dom precioso”, escreve no apaixonado prefácio – publicado hoje em exclusiva no Corriere dela Sera – da primeira Obra completa do companheiro jesuíta, ex arcebispo de Milão, aos cuidados de Virgínio Pontiggia. O livro, com o título “Le cattedre dei non credenti” (As cátedras dos não crentes”, será publicado na Itália na próxima quinta-feira, 22 de outubro, pela ed. Bompiani e recolhe os discursos da “Cátedra dos não crentes”, iniciativa começada em 1987 que testemunha o compromisso de Martini com o diálogo.
"A sua vida, as suas obras e as suas palavras infundiram esperança e apoiaram muitas pessoas em seus caminhos de busca”, escreve o Pontífice. Começando com a Argentina: “Quantos de nós, no fim do mundo, fizemos os Exercícios Espirituais com os seus textos!”, exclama o Papa.  E quantos “homens e mulheres de diferentes crenças, não só em âmbito cristão, encontraram e continuam a encontrar coragem e luz nas suas reflexões”. É portanto uma “responsabilidade” valorizar este “patrimônio”, de tal forma que “ainda possa hoje alimentar percursos de crescimento e suscitar uma autêntica paixão pelo cuidado do mundo”.
Em particular, o Papa destaca três aspectos importantes da figura do inesquecível biblista e exegeta: “Sinodalidade, diálogo e Palavra de Deus”. Martini esteve muito atento “para promover e acompanhar dentro da comunidade eclesial o estilo de sinodalidade tão desejado pelo Concílio Vaticano II”, que, de um lado, requer “uma atitude de escuta e de discernimento”; do outro, “o cuidado para que as diferenças não degenerem em conflito destrutivo”.
O cardeal não teve medo “das tensões, ou até mesmo das disputas”, que – destaca Bergoglio – “necessariamente todo impulso profético traz consigo”. Tanto que o seu lema episcopal era pro veritate adversa diligere. Ele – continua – “sempre procurou neutralizar a carga destrutiva e, com sensibilidade e carinho com a Igreja, transformá-la em ocasiões importantes de um processo de mudança e de crescimento na comunhão”. Também diante de situações de oposição, "sempre evitou a contraposição, que não leva a nenhuma solução, pensando de forma criativa em termos alternativos”.
Muito menos o card. Martini deixou-se levar pelas “modas ou pesquisas sociológicas”; o que o conduzia era “uma única questão de fundo: de forma Jesus Cristo, vivo na Igreja, é, hoje, fonte de esperança?”. Ao mesmo tempo, “era consciente da presença na Igreja de tantas sensibilidades diferentes de acordo com contextos culturais, que não podem ser integrados sem um livre e humilde debate”.
De fato, Martini precisava de um “instrumento de confronto universal”, porque “quando se procura a vontade de Deus sempre existem pontos de vista diferentes e é necessário procurar espaços para ouvir o Espírito Santo e permitir-lhes obrar em profundaide”. É com este “estilo” pastoral e espiritual que o prelado “não procurou somente envolver os membros da comunidade eclesial”, mas “também ativamente de encontrar aqueles que na comunidade dos fieis não eram reconhecidos imediatamente”.
A segunda característica relevante do cardeal é, de fato, ter incentivado “o olhar além dos confins consolidados, favorecendo uma Igreja missionária ‘em saída’ e não fechada sobre si mesma”. A prova disso é “o modo novo de dialogar com o mundo contemporâneo que foi a Cátedra dos não crentes”, iniciativa que nasce da convicção de “que todos, crentes e não crentes, estamos em busca da verdade e não podemos desprezar nada”.
"Todo crente carrega consigo a ameaça da não-crença e todo não-crente carrega dentro de si a semente da fé - escreve o Papa – o ponto de encontro é a disponibilidade de refletir sobre questões que todos nos unem”. O próprio Martini “nunca deixou de ser um cristão que se perguntava com honestidade sobre a própria fé, na consciência de que isso não impedia, mas sim reforçava, o seu ministério de bispo chamado a apascentar o rebanho que lhe foi confiado."
Percebendo, portanto, “a fecundidade da contribuição que as comunidades cristãs podem dar à sociedade civil hoje”, o cardeal testemunhou que “os princípios da fé, longe de serem motivo de guerra e de contraposição dentro da convivência civil, podem e devem ser vivíveis e desejáveis também pelos demais”.
O convite a “fazer-se próximo” caracterizou o seu magistério e “ressoou com força e eficácia dentro da sociedade civil e no mundo da política”, também além dos âmbitos da cidade de Milão. E aqui está o terceiro aspecto, afirma o Papa Francisco: a “familiaridade” do cardeal com a Palavra de Deus, que “se unia ao talento pastoral de saber comunica-la a todos, crentes e leigos, intelectuais e pessoas simples”.
A atenção constante do arcebispo ambrosiano ao tesouro da Escritura – destaca o Papa Bergoglio – faz com que as suas palavras “não possam ser vistas como considerações motivadas pelo bom senso ou por teorias políticas”, mas “expressam toda a riqueza da tradição conseguindo interpelar cada pessoa e cada povo”. Em particular ele indicou “percursos para ligar a Palavra à vida”, para que assim ela pudesse “se tornar agente de conversão, alimentando uma vida mais fraterna e mais justa, impedindo fugir para a sombra de cômodas seguranças pré-confexionadas”.
Sobre isso, o Papa recorda a iniciativa da “Escola da Palavra”, promovida pelo cardeal na arquidiocese de Milão, difundida também em outros países: ou seja, “ocasiões de leitura sapiencial da vida” que permitiram que muitas pessoas, especialmente os jovens, "desfrutassem a novidade permanente, que surge a partir da leitura do texto bíblico". Com essa abordagem, o cardeal Martini valorizou de forma “original” também a espiritualidade da Companhia de Jesus, usando bastante a pedagogia inaciana, especialmente dos Exercícios espirituais, “para envolver na oração todas as dimensões da pessoa, incluindo corporeidade e afetividade”.
Três aspectos resumem, então, a figura do cardeal: sinodalidade, diálogo e Palavra de Deus. Resumem, mas certamente – diz Francisco – não “exaurem a atualidade”: muitos outros aspectos “deveriam ser colocados em evidência”. Por isso é que se diz “grato” com aqueles que se dedicam a “reunir, ordenar e colocar a disposição de forma orgânica a grande quantidade de discursos e de escritos do cardeal Martini, situando-o no contexto histórico e nas circunstâncias em que foram elaborados”.
A partir desta obra completa, que o Pontífice espera que possa constituir “um constante convite para refletir juntos no modo em que estamos construindo o futuro do nosso planeta e procurar caminhos compartilhados de libertação e de esperança”. Também que possa ser “de grande ajuda no nosso mundo tão marcado por forças divisionistas e desumanizantes para inspirar uma vida mais rica de sentido e uma convivência mais fraterna”.

Fonte: Zenit.

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