quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Arcebispo nigeriano fala do Boko Haram, do convívio com o medo e da fé na Nigéria

Dom Ignatius Kaigama, da diocese de Jos, presidente da Conferência dos Bispos da Nigéria, passou recentemente alguns dias em Nova Iorque e abordou a situação de violência cada vez mais intensa em seu país, onde os jihadistas do grupo radical Boko Haram continuam a matar indiscriminadamente muçulmanos e cristãos.
 
No espaço de apenas uma semana no final de julho, o grupo explodiu duas bombas que mataram 100 pessoas, atacou uma igreja católica na cidade de Kano e deixou 5 mortos e, numa ação profundamente perturbadora, usou jovens meninas de apenas 10 anos de idade como suicidas para detonar explosivos. Além disso, a data de 30 de julho marcou o 100º dia de sequestro de cerca de 300 meninas pelo Boko Haram, a maioria delas cristãs.
O arcebispo conversou com a associação internacional católica Ajuda à Igreja que Sofre, em 31 de julho.

Ajuda à Igreja que Sofre: Deixando o extremismo islâmico de lado por um momento, qual é a relação entre os cristãos e os muçulmanos na Nigéria?

Dom Kaigama: Há uma competição bastante saudável entre os dois grupos. Muitas vezes, é uma luta por expansão geográfica e pela política de dados. Cada grupo religioso reivindica superioridade numérica, mas os registros não confirmam os dados. Há uma tensão inter-religiosa mais pronunciada no norte. No sul, há uma abordagem mais liberal na relação entre muçulmanos e cristãos. Existe uma compreensão melhor do casamento entre cristãos e muçulmanos e o espírito de fanatismo ou fundamentalismo é menos pronunciado.
No norte, em geral, um homem muçulmano pode se casar com uma mulher muçulmana ou cristã; mas uma mulher muçulmana não pode se casar com um cristão. Já no sul, existem casos de homens muçulmanos de destaque se casando com mulheres cristãs e permitindo que elas continuem a praticar a sua própria fé.
Que o norte muçulmano tenha sido dominante politicamente é um legado do colonialismo. Na transferência de poder, em 1960, os britânicos optaram por tirar proveito da administração indireta e da prática da sharia, o que levou a uma certa estabilidade e ordem.

AIS: O senhor acredita muito no diálogo, não é?

Dom Kaigama: Nós fazemos o nosso melhor para criar harmonia e compreensão. Existe a Associação Cristã da Nigéria e o Conselho Inter-Religioso da Nigéria. Esses órgãos unem muçulmanos e cristãos. Temos que explorar o que nos une e o que nos diferencia. Não estamos apenas lutando uns contra os outros. Isso é uma caricatura enganosa do nosso país.

AIS: Mas, dadas as diferenças entre os dois grupos, o que o diálogo pode realmente alcançar? Há uma diferença teológica e filosófica bem considerável.

Dom Kaigama: Mas é melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão. No meio da escuridão ou da violência, é melhor acender uma vela, uma vela de esperança para dissipar a escuridão terrível da violência. É verdade que não podemos entrar em teologia porque não haverá qualquer progresso. Existe o que chamamos de "Diálogo da Vida". Não há alternativa a não ser nos unirmos, como seres humanos, tomar chá ou café juntos. Assim vamos conhecer uns aos outros. Pode haver alguma troca de ideias. O "Diálogo da Vida" significa, simplesmente, “a sua vida afeta a minha e a minha afeta a sua”. É muito simples. Não se trata de produzir resultados imediatos, mas de ser amigos e de estar envolvidos na conversa. Eu comecei este processo de forma modesta em Jos, onde as coisas estavam muito mal quando eu fui nomeado para a arquidiocese.

AIS: O governo não está à altura da tarefa de gerenciar adequadamente o país? As coisas estavam muito ruins mesmo antes de o Boko Haram estourar no cenário...

Dom Kaigama: Os nossos líderes simplesmente não são muito sensíveis aos pobres, mesmo quando existe ajuda disponível. A Igreja, com as suas possibilidades limitadas, tenta promover o diálogo, a prestação de socorro e, mais simplesmente, esta lá, presente. Nós nos destacamos, sem querer nos vangloriar, porque temos sido úteis indo além das divisões políticas e religiosas. Esta boa vontade vem do coração e as pessoas a apreciam. As pessoas vêm me pedir ajuda e muitas vezes eu me sinto envergonhado porque só posso fazer muito pouco. Nós acabamos sendo assistentes sociais. Eu pensava que o meu trabalho era apenas de abençoar as pessoas... Mas eu também tenho que me preocupar com água e eletricidade.

AIS: Existe algum tipo de apoio de alguma parcela da população ao Boko Haram?

Dom Kaigama: É difícil dizer, porque nós realmente não sabemos quem eles são. Eles poderiam ser seus vizinhos; seus amigos da vida toda. Eu sempre digo: “Você só os conhece quando eles estão mortos, quando eles se explodem como homens-bomba”. Eles usam carros bons, porque querem ser vistos como gente respeitável​​. E de repente, antes que você perceba, acontece uma explosão.

AIS: O senhor acredita que o Boko Haram recebe financiamento do exterior?

Dom Kaigama: Tanto dentro quanto fora da Nigéria existem simpatizantes poderosos. Até agora, o nosso governo não foi capaz de acabar com o grupo. Deve haver maneiras de rastrear o financiamento e outras formas de apoio, mas eu não acredito que o nosso governo esteja fazendo disto uma prioridade. Esperamos que, com a ajuda da comunidade internacional, o fluxo de armas e de fundos possa ser bloqueado. Mas, apesar das minhas expectativas, não aconteceu quase nada, mesmo no tocante ao rapto das alunas que virou manchete no mundo todo. O Boko Haram é bem treinado e bem armado. Quem está ajudando na organização? Eu suspeito de financiamento estrangeiro. Mas, apesar da grande quantidade de dinheiro gasto pelo nosso governo e pelas forças armadas, ainda não sabemos a maior parte das respostas.

AIS: Parece que o Boko Haram ampliou a sua gama de alvos, incluindo também os muçulmanos moderados e instituições do Estado, correto?

Dom Kaigama: No começo, nós pensamos que eles eram simplesmente contra a educação ocidental e queriam propagar o que eles acreditavam que fosse a autêntica mensagem do islã. Mas depois eles começaram a atacar o governo e em seguida as igrejas. Os ataques contra igrejas têm acontecido em muitos lugares, com a trágica perda de vidas, e continuam até hoje. Não podemos esquecer que os lugares de culto dos muçulmanos também têm sido alvos. Os ataques repetidos em Kano e em Kaduna mostram que a luta foi além das religiões do islã e do cristianismo. Aliás, muitos muçulmanos e cristãos de boa vontade estão falando uma linguagem comum e agora estão procurando maneiras de combater essa ameaça.

AIS: O senhor, pessoalmente, tem medo?

Dom Kaigama: Bom, sim, é normal ter medo. Mas, dada a minha missão, eu desisti de tudo para servir a Deus e ao seu povo. Eu não tenho uma família biológica, esposa e filhos, nenhuma posse para chamar de minha. Se eu perder a minha vida no processo de defesa dos direitos das pessoas à liberdade de culto e à unidade da humanidade, eu não tenho mais nada, além dos meus queridos colaboradores pastorais e das excelentes pessoas de boa vontade, de várias origens étnicas e religiosas, que eu deixaria para trás. Você não corteja a morte, mas ela é um fim inevitável para todos nós, incluindo os que afirmam que estão matando e bombardeando em nome de Deus. Mesmo sendo tão certo que a morte virá para todos, você ainda tem medo da morte, e isso também é verdade para todos.

AIS: O senhor já recebeu alguma ameaça?

Dom Kaigama: Graças a Deus, não, mas eu sei que os meus movimentos e atividades e até mesmo o meu celular estão sendo monitorados. Mas como eu não pretendo fazer nenhum mal, não incentivo nenhum mal nem apoio nenhum mal, não tenho nada a esconder.

AIS: O que o senhor diz aos seus sacerdotes e religiosos quando se trata de lidar com o medo?

Dom Kaigama: Eu vou atrás das coisas. Eu nunca perco nenhuma cerimônia pública. Isso diz a eles que eu estou com eles, com as pessoas. Mesmo que a violência aconteça ali do lado, eu continuo participando das coisas públicas, usando o meu traje formal, para estar presente. Os funcionários do governo já ficam longe. Eu não tenho uma segurança particular. Isto seria um ímã para os ataques. Os militantes odeiam a polícia.
Além disso, usar segurança pessoal me tornaria um prisioneiro. E faria o nosso povo sentir mais medo! Imagine os sacerdotes andando por aí com guarda-costas. Nós acreditamos que Deus está conosco. Acreditamos que vamos triunfar apesar das maquinações dos malfeitores.

AIS: O senhor acredita que o Boko Haram representa o mal?

Dom Kaigama: Sem dúvida. Quando você mata e extermina não só os combatentes, mas as mulheres, as crianças, os pobres, isso é o mal. No atentado contra o mercado de Jos, morreram 118 pessoas! E não eram burocratas ou pessoas importantes; quem morreu era vendedor de laranja, vendedor de amendoim, vendedor de leite, gente que estava tentando fazer um pouco de dinheiro. Isso é uma expressão do mal.

AIS: De que as pessoas mais precisam na Nigéria?

Dom Kaigama: As pessoas precisam de solidariedade. A primeira coisa que eu vou fazer quando retornar desta viagem é ir a uma paróquia e participar de uma celebração de uma congregação que comemora o seu 50º aniversário de fundação. Eu vou ficar numa aldeia que não tem eletricidade, e não importa. Eu tenho que estar lá, presente.

AIS: Por causa da escassez de sacerdotes na América do Norte, um número crescente de sacerdotes nigerianos tem vindo para os Estados Unidos, para trabalhar em paróquias daqui. Qual é o dom da espiritualidade nigeriana, o carisma da Igreja nigeriana? Qual é o seu dom para a Igreja do mundo inteiro?

Dom Kaigama: Os nigerianos são um povo muito resistente. Nós passamos por tanta coisa, guerra civil, violência, as atrocidades do Boko Haram, mas você vê todos os nigerianos ainda sorrindo e prontos para seguir em frente. Eles nunca dizem que tudo acabou. Esse espírito vibrante também vem para dentro da Igreja. As nossas liturgias são algo especial, não é apenas um assunto de rotina. Na sexta-feira, todo mundo já está pensando no domingo para se preparar. No sábado, as roupas estão sendo lavadas e preparadas. Isso diz: “tem algo grande sendo esperado!”. E até porque nós não temos muitas oportunidades sociais e recreativas, a missa dominical é tanto um evento espiritual quanto social.

Fonte: Zenit.

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