A Arábia Saudita é considerada terra sagrada para a maioria dos muçulmanos que vivem ali. Em consequência disso, cristãos e inclusive muçulmanos de outros grupos enfrentam graves restrições.
Os cristãos são cerca de 3% da população, mas não têm igreja e nunca expressam sua fé em público.
O professor Camille Eid, jornalista, escritor, professor da Universidade de Milão e especialista em Igrejas do Oriente Médio, faltou sobre a situação na Arábia Saudita com o programa “Deus chora na terra”, de ‘Catholic Radio and Television Network’ (CRTN) em colaboração com Ajuda à Igreja que Sofre.
–A Arábia Saudita é uma monarquia hereditária baseada na fundação do islã wahhabi. Que é esse ramo do islã?
–Eid: O wahhabismo é uma nova doutrina do islã. Seu fundador é Abd-al Wahhab, que foi um erudito religiosa de Hanafi Islã, que é a doutrina mais estrita do islã. Ele decidiu que se deviam eliminar do islã todas as inovações, ‘Bida’ é o termo em árabe. Uma visita a um cemitério, por exemplo, é considerada uma inovação bida, e se proíbe. Você não pode fazer nada que o profeta Maomé e seus companheiros não fizeram. Desta forma, a aliança entre os seguidores de Wahhab e o príncipe fez possível na Arábia Central o nascimento do reino árabe saudita. A Arábia Saudita tomou seu nome da família Saud. Essa aliança da casa Saud com o ramo wahhabi ainda se mantém hoje, e os sucessores do reino continuam esta versão e doutrina estrita do wahhabismo; as leis do reino seguem as diretrizes estritas do wahhabismo.
–O que ocorre com os xiitas?
–Eid: Os xiitas representam quase 10% da população e enfrentam uma grande discriminação. Concentram-se sobretudo na parte leste do reino. Há outro ramo dos xiitas, os ismaelitas, que estão muito próximos da fronteira com o Iêmen. O rei e seus dirigentes professam o wahhabismo.
–O Alcorão é a constituição da Arábia Saudita. Que postura o Alcorão adota com os não muçulmanos?
–Eid: O Alcorão distingue entre cristãos e judeus, e outros não crentes. Os cristãos e judeus são chamados de o “povo do livro”, ou dos livros, – o Evangelho e a Torá. Em ocasiões os cristãos são descritos no Alcorão de um modo muito positivo. O rei cristão e os sacerdotes rezam. Mas, durante o segundo período na revelação do Profeta, os cristãos são descritos como incrédulos e se diz que deveriam pagar "jizya", o imposto requerido para receber proteção em uma sociedade islâmica. Parece haver uma contradição no próprio livro. Essa é a razão pela qual há um islã liberal e um islã violento. O islã violento é resultado da segunda revelação, que aconteceu durante o último reinado de Maomé e, como resultado, as sociedades islâmicas atuais estabelecem que se devem seguir os acontecimentos da segunda revelação e não os das revelações anteriores, que são mais tolerantes.
–O governo baseia-se nos princípios da sharia. O que é?
–Eid: A sharia é o compêndio do Alcorão, o Hadith, que são as declarações de Maomé, e de outras fontes como o Ishma, que é o consenso de todos os eruditos islâmicos (ulemás). A lei da sharia sai de tudo isso.
–Todos os residentes que vivem na Arábia Saudita estão submetidos à lei da sharia?
–Eid: Sim. E ninguém pode se opor, porque equivale a se opor ao islã. Na chegada ao aeroporto, informa-se de forma imediata de que se deve cumprir as estritas leis islâmicas. Eu, como cristão, por exemplo, tinha à mão um refrigerante durante o Ramadã. Dei-me conta de que todo mundo estava me olhando de um modo determinado e que me teriam batido. Não se pode comer em público durante o jejum. Só se pode comer de forma privada. Assim, deve-se observar o jejum mesmo que não seja muçulmano, porque é a lei.
–Os cristãos constituem o maior grupo não muçulmano da Arábia Saudita. Como os cristãos vivem sua fé nesse país?
–Eid: Em segredo. É proibido ter Bíblias, imagens religiosas e rosários, que, se forem detectados no aeroporto, são confiscados de imediato. Em uma ocasião, no aeroporto de Riade, eu estava com um vídeo e pediram para vê-lo. Era o filme Espartaco. De repente, tive medo de que vissem a imagem da crucificação. O guarda permitiu porque era um soldado o crucificado, e não Jesus Cristo... É difícil. Quando mais de dois, ou um grupo de famílias, rezam juntos de forma privada em sua casa, a polícia pode intervir para prendê-los.
–Que ocorre a um cristão que é capturado com um rosário em seu bolso ou portando uma cruz?
–Eid: Se estiver no bolso, ninguém poderá vê-lo. No entanto, se usar uma cruz, qualquer muçulmano – e não só a polícia – pode tirá-lo. Você será preso e corre o risco de ser expulso do reino. O enviarão para a prisão e, depois de alguns dias, emitirão um visto de expulsão.
–Que outro tipo de atividade cristão são punidas por lei?
–Eid: Punem-se todas as manifestações públicas de qualquer fé que não seja o islã. Eles sabem que os americanos, franceses e italianos celebram a Missa de Natal e Páscoa dentro das embaixadas, mas como a embaixada é extraterritorial, a lei não se aplica. A polícia, no entanto, está próxima para controlar. Não há igrejas, sinagogas ou templos no reino. Proíbe-se toda manifestação de outra fé.
–Quem faz cumprir a lei?
–Eid: Há 5.000 policiais religiosos divididos em 100 distritos, mas qualquer muçulmano pode impor a lei, denunciando uma pessoa. Passei dois anos e meio em Riade. Tinha medo de felicitar pela Páscoa ou Natal inclusive por telefone, porque temia que alguém pudesse estar escutando. A polícia religiosa controla tudo, incluindo as livrarias, porque é proibido vender qualquer postal com temas não muçulmanos. Há alguns anos, no colégio americano, um Papai Noel quase foi preso. É proibido.
–Os cristãos são objetivo particular de perseguição ou discriminação?
–Eid: Não só os cristãos, mas também as versões não wahhabis do islã, como a xiita ou a ismaelita. Nem todas as comunidades cristãs sofrem igual. Os norte-americanos, italianos, franceses e britânicos – de fato a maioria dos europeus e outros de países do primeiro mundo – sofrem menos, porque sabem que esses países são poderosos e intervirão de modo imediato para proteger seus cidadãos. Por isso tomam como objetivos os cristãos de países do terceiro mundo como Eritreia, Índia e Filipinas. Esses países temem a perda de remessas de seus cidadãos que vivem no reino.
–Até onde pode chegar a perseguição?
–Eid: Até a morte. Temos o caso do martírio de uma jovem saudita que se converteu ao cristianismo. Seu irmão a descobriu. Escreveu um poema para Cristo e lhe cortaram a língua, depois ela apareceu morta. Seu nome era Fatima Al-Mutairi e isso ocorreu em agosto de 2008. Em 2008, dois casos de intervenções da polícia religiosa deram como resultado que homens, mulheres e crianças de menos de três anos fossem presos. Temos muitos informes de torturas; antes de ser deportados a seus países, esses filipinos, indianos, eritreus são torturados nas prisões.
–Que número de muçulmanos se convertem ao cristianismo?Tem alguma informação?
–Eid: Não é possível saber. A sociedade é difícil de penetrar, porque o regime controla cada atividade. Em ocasiões se sente a partir da perspectiva das mulheres. Quando estas mulheres sauditas vão ao exterior, inclusive quando sobem no avião, tiram o ‘hiyab’. No Líbano e outros países, bebem álcool. Quando voltam a seu país, sabem que têm de cumprir as leis.
– E os convertidos?
–Eid: Existem cristãos convertidos. Eu acompanho a mídia em árabe, que transmite na Arábia Saudita e em todo mundo árabe, e durante as transmissões muitas ligações que têm origem na Arábia Saudita. Esses convertidos que viajam ao Marrocos e Egito falam de sua experiência, mas nunca mencionam seus nomes, e só pedem que a comunidade cristã reze por eles, porque aspiram a ver o dia em que lhes será permitido ir à igreja, andar com o Evangelho e partilhar sua fé. Se um convertido informa seu irmão ou seu pai de sua nova fé, enfrenta o perigo de ser acusado de traição à família, à nação e à sociedade.
–O professor egípcio Samir Khalil Samir, especialista em Alcorão, afirma que esse livro sagrado não traz obrigação nenhuma de matar um apóstata. De onde vem essa expressão de violência?
–Eid: Exatamente. No livro 14 do Alcorão fala-se de apostasia, mas não se diz nada de uma pena nesta vida, mas na segunda. Esta alteração vem do Hadith de Maomé em que diz que qualquer um que mude de religião deve ser morto. Mas disso surge outro problema, porque, como os milhares de Hadiths, não há provas de que Maomé tenha dito isso de verdade. Muitos países islâmicos, como Paquistão, Afeganistão sob os talibãs, Irã e Iêmen, entre outros, aplicam a pena de morte baseando-se em um Hadith do qual não há certeza de que tenha sido de Maomé.
–Pode nos falar dos católicos que vivem na Arábia Saudita?
–Eid: É difícil ser católico leigo na Arábia Saudita, porque é preciso uma fé com base profunda. Não se pode ter o Evangelho em casa. Não se pode ter o terço. Não se pode ter contato com amigos cristãos como comunidade. Você pode ter amigos, frequentar comunidades estrangeiras, mas está proibido de falar de sua fé.
Em outros países islâmicos, a sexta-feira é dia festivo, e assim se permite a Missa comunitária, mas não no domingo, pois o domingo é dia de trabalho. Mas este não é o caso da Arábia Saudita. Assim, você se torna uma comunidade consigo mesmo. Normalmente, não tem sequer a própria família, porque a Arábia Saudita põe restrições à reunificação familiar. Se você tem uma filha maior de 18 anos, não pode ficar na Arábia Saudita se ela não for casada. Assim, a maioria tem suas filhas em outros lugares. Você fica sozinho e sem contato com outros católicos, o que é muito difícil. Terá de ter a força da fé em seu coração, ser capaz de rezar sem livros de oração, só saber e rezar as orações de memória.
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Esta entrevista foi realizada por Mark Riedemann para "Deus chora na terra", um programa rádio-televisivo semanal produzido por ‘Catholic Radio and Television Network’, (CRTN), em colaboração com a organização católica Ajuda à Igreja que Sofre.
Mais informação em www.aisbrasil.org.br, www.fundacao-ais.pt.
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