Antecipamos nesta semana a apresentação do comentário à Liturgia da Palavra redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São Paulo), para favorecer a compreensão do Tríduo Sagrado da Páscoa. Doutor em liturgia pelo ‘Pontificio Ateneo Santo Anselmo’ (Roma), Dom Emanuele é monge beneditino camaldolense.
O TRÍDUO SAGRADO DA PÁSCOA: JESUS MORTO, SEPULTADO, RESSUSCITADO
Um olhar de conjunto
“Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis seus caminhos!... Porque tudo é dele, por ele e para ele. A ele a glória pelos séculos! Amém” (Rm 11, 33.36).
A expressão de maravilha e de louvor por parte do apóstolo diante do mistério da aliança irrevogável de Deus com Israel - aliança que vai além da sua infidelidade - e do chamado dos pagãos a participarem da sua plena realização na morte e ressurreição de Cristo, bem interpreta os sentidos mais profundos da Igreja ao celebrar o solene Tríduo Pascal. Este evento Pascal é a fonte divina e perene da sua vida, assim como do caminho espiritual desenvolvido ao longo do ano litúrgico. A Igreja nos convida a entrar em atitude de maravilha e adoração.
O Tríduo Sagrado inicia-se na tarde da quinta-feira santa, com a celebração da Ceia do Senhor, e acaba com as segundas Vésperas do dia da Páscoa. A Igreja contempla com fé e amor e celebra o mistério único e indivisível do seu Senhor Morto (Sexta-feira santa), Sepultado (Sábado santo) e Ressuscitado (Vigília e dia de Páscoa).
Com o Tríduo Pascal chegamos ao coração da história inteira e ao escopo da própria criação. A luz Pascal deste Santo Tríduo ilumina a vida de Jesus, sua missão desde seu nascimento e o projeto salvífico de Deus no seu desenvolvimento histórico: desde a criação e através das relações especiais da aliança com os patriarcas e os profetas, testemunhadas pelo Antigo Testamento. Na morte e ressurreição de Jesus e na efusão do Espírito, aquele projeto se revela em todo seu sentido profundo, e inicia a etapa radicalmente nova desta história que caminha rumo a seu cumprimento no fim dos tempos (cf. Ef 1,1-14; Cl 1, 15-20).
As pessoas que foram regeneradas na fé e no amor pelo batismo receberam as potencialidades e a vocação a viver como homens e mulheres “partícipes da vida do Ressuscitado”, partilhando a mesma energia divina de Cristo no Espírito (cf. Ef 2, 4-8; Cl 3, 1-4: 5-11).
As celebrações do Tríduo são particularmente ricas de gestos, movimentos, Palavra proclamada e comentada, cantos, silêncios. Tudo converge para nos aproximarmos com coração aberto e íntima devoção ao mistério da morte e da ressurreição de Cristo e da nossa participação a ele, por graça. O que mais nos surpreende é descobrir, mais uma vez, o amor gratuito com que Deus nos amou, e fica nos amando, até doar seu próprio Filho por nós e nele doar-nos sua própria vida: “para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16), como nos lembra o evangelista. Surpreendidos ainda mais pelo feito que “não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou-nos seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados” (1 Jo 4, 10).
O extremo esvaziamento do Verbo encarnado, na morte de cruz e no silêncio do sepulcro, abre o caminho para uma nova história, em prol de cada um e do mundo inteiro. “Batizados em Cristo Jesus, é na sua morte que fomos batizados. Portanto pelo batismo nós fomos sepultados com ele na morte, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós vivamos vida nova” (Rm 6, 3-4).
Celebramos em maneira indivisível a Páscoa pessoal de Jesus e a Páscoa de seu corpo vivo que é a Igreja e cada um de nós, a caminho na esperança da renovação plena e definitiva.
Os três dias do Tríduo sagrado constituem a trama articulada e unitária do único e mesmo mistério pascal de Jesus e da Igreja. Cada dia, com a especificidade da sua linguagem ritual, põe a tônica sobre uma etapa ou aspecto do caminho pascal de Jesus. A forma narrativa dos acontecimentos destaca que a ação de Deus em Jesus se insere na realidade humana com suas aberturas e resistências, até a dramática recusa do seu amor. Mas o amor de Deus não se deixa vencer pelo mal e o pecado: “Antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13, 1).
Cada um dos três dias nos proporciona a oportunidade de nos mergulharmos em diferentes aspectos do mistério pascal. Por enquanto, achei mais conveniente oferecer ao início algumas sugestões de caráter geral. Talvez elas possam ajudar a colocar e viver cada celebração na visão unitária do mistério pascal, assim como a Igreja o contempla e no-lo transmite através das celebrações. De cada dia irei destacar um ou outro elemento, útil para evidenciar a continuidade interior do Tríduo.
A Quinta-feira santa: “Jesus... tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”
A missa do Crisma, presidida na manhã pelo bispo em sua catedral, com a participação do clero e do povo, encerra a quaresma e prepara os Óleos santos finalizados à celebração da iniciação cristã - especialmente durante a grande vigília pascal - e a da unção dos enfermos. Os textos bíblicos (Is 61, 1-9; Ap 1,5-8; Lc 4, 16-21), assim como as orações e o magnífico prefácio, destacam o sacerdócio de Jesus e a participação do povo cristão ao sacerdócio dele no Espírito Santo, em força do batismo. É o coração do dom da páscoa e da vida nova de todo o povo de Deus.
A Ceia do Senhor, na tarde (Ex 12, 1-14; 1 Cor 11, 23-26; Jo 13, 1-15), abre o Tríduo, celebrando antecipadamente na forma sacramental da eucaristia o dom do corpo e do sangue do Senhor, que a Igreja guarda como memória viva e fonte inesgotável da sua vida no tempo. A Igreja está certa de que “todas as vezes que celebramos este sacrifício em memória do vosso Filho, torna-se presente a nossa redenção” (Oração sobre as oferendas). O gesto de amor e de humildade com que Jesus, o Mestre e o Senhor, lava os pés aos discípulos, determina o horizonte divino das relações recíprocas entre os discípulos, e deles com qualquer pessoa, em toda situação e em todo tempo. Cada sofrimento partilhado e cada gesto de solidariedade faz Jesus lavar os pés e cumprir seu mandamento.
A Sexta-feira santa: celebração da Paixão do Senhor
No centro da celebração está o evento e o mistério da cruz, proclamado nas Escrituras (Is 52,13-53,12; Jo 18,1-19,42), honrado com a adoração e o beijo da cruz por parte da a assembléia, reconhecido como intercessão permanente junto do Pai (Oração universal), interiorizado na comunhão. A cruz é tragédia em nível humano, porém a fé a proclama como revelação suprema do amor de Jesus e início da vida nova que dele brota.
Neste dia a Igreja fica concentrada diretamente sobre a contemplação silenciosa e adorante do evento da crucifixão. Não celebra a memória sacramental da morte de Cristo com a Missa. A cruz é o “eixo do mundo”, diziam os Padres da Igreja, pois nela se manifesta o extremo compromisso de Deus em favor do mundo. Este amor divino é o que sustenta o mundo.
O estilo de Deus é loucura para os homens (cf. 1 Cor 3,18 -25), como o silêncio da morte ignominiosa na cruz. Porém este silêncio se torna o grito mais alto que testemunha seu amor sem limite.
O grito sofrido e confiante de Jesus, “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34; Sal 21, 2), assume em si mesmo o grito dos crucificados de todos os tempos, e abre para eles a esperança, pois “por isso Deus o exaltou e lhe concedeu um título (Kyrios- Senhor) que é superior a todo título”, e o fez raiz e modelo de vida nova entre os irmãos (Fil 2, 6-9).
O perdão invocado sobre os algozes: “Pai, perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,34) e a entrega confiante ao Pai: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito” (cf. Sal 31,6 - Lc 23,46), abrem caminho definitivo para a comunhão renovada com Deus, abolindo todo impedimento ou outra mediação: “Jesus, porém, tornado a dar um grande grito, entregou o espírito. Nisso, o véu do templo se rasgou em duas partes, de cima a baixo, a terra tremeu e as rochas se fenderam” (Mt 27,50 -51).
A Igreja hoje se reveste do silêncio mais do que de palavras. A celebração da Paixão se abre e acaba com a assembléia em silêncio! Ela fica olhando intensamente o esposo e cruza seu olhar com o olhar compassivo dele, que lhe transmite toda a força do seu amor. É do encontro deste recíproco olhar no amor que nascem os namorados e as namoradas de Cristo, os que chegam a doar a própria vida por ele e como ele.
Nas salas cinematográficas do Brasil está estreando nestes dias o filme “Homens e Deuses” (Des Hommes et des Dieux), do diretor francês Xavier Beauvois. Narra a história simples e extraordinária dos sete monges trapistas mortos em 1997, em maneira ainda misteriosa por mão violenta, no mosteiro de Nossa Senhora do Atlas, na Argélia. Testemunhas de amor gratuito e sem limites entre si e com os habitantes muçulmanos da região, impelidos pela profunda relação pessoal de cada um com Cristo, única razão para ficarem solidários entre si e com os irmãos muçulmanos, se necessário até o martírio, como de fato aconteceu. É esta relação pessoal no amor que faz Cristo crucificado e sua páscoa tornar-se contemporâneos para com cada um de nós.
Na sua fé a Igreja contempla o mistério da cruz na sua integridade, deixando-se guiar pela visão teológica da Paixão escrita por João. Ela faz da cruz o “evento de salvação”, da elevação violenta de Jesus na cruz a sua glorificação, e do “crucificado” o “Senhor” que dá a vida, derramando o Espírito criador (cf. Jo 19,30). A arte da Igreja, até o séc. 13, teve a ousadia de representar Jesus crucificado, como o Vivente, o Rei vitorioso e o Sacerdote do Pai. Do seu lado transpassado nasce o admirável sacramento da Igreja (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 5).
A religiosidade popular do Brasil, herdeira da religiosidade popular de Portugal colonial, tem ainda dificuldade de integrar a cruz na ressurreição. Deixando-se guiar pela liturgia, existe bastante espaço para valorizar a sensibilidade do povo brasileiro para o Cristo sofredor, tão próximo à sua história e, ao mesmo tempo, reconstruir a integridade da boa nova libertadora de Jesus e do seu mistério pascal.
Sábado Santo: dia do silêncio de Deus e dos homens
O Sábado santo é o dia do grande silêncio. Só a Liturgia das Horas acompanha as etapas do dia.
Um dia vazio ou, ao invés, um dia de silêncio contemplativo e fecundo, de espera e de esperança, suscitada pela gestação silenciosa da nova criatura no seio da terra e do coração de Deus?
“Que está acontecendo hoje?”, se pergunta o autor de uma antiga homilia sobre o sábado santo (séc. IV). “Um grande silêncio reina sobre a terra. Um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o rei está dormindo; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque o Deus feito homem adormeceu e acordou os que dormiam há séculos.” (LH, IV, Sábado santo).
O Sábado santo testemunha que Deus continua descendo até as entranhas mais obscuras e ambíguas da alma humana, e nas experiências mais marginalizadas, para recuperá-las e trazê-las à vida. Nada e ninguém é abandonado a si mesmo. Aprender a conviver com a “fraqueza” de Deus, com os silêncios de Deus, com os tempos e os diferentes ritmos de Deus, dos seus projetos, com a pedagogia com a qual ele nos dirige e acompanha com amor fiel embora às vezes incompreensível. Eis a lição do Sábado santo. O Sábado santo não é somente o segundo dia do tríduo: é uma dimensão constitutiva da identidade cristã e de todo caminho espiritual cristão.
Para perceber e acolher a voz silenciosa que sobe da escuridão, é preciso o silêncio interior que abre à escuta e à uma visão mais aguda.
A grande Vigília da noite e o domingo de Páscoa
A grande vigília da noite, junto com o dia de Páscoa, constitui o cume do Tríduo sagrado e do caminho quaresmal.
São a noite e o dia destinados por sua natureza a iniciar/introduzir os catecúmenos à fundamental relação pessoal com Cristo através dos sacramentos da iniciação cristã. Com as palavras dos profetas Oséias e Isaías (4a Leitura: Is 54,5-14), a liturgia chama esta vigília de “noite das núpcias” de Cristo com a Igreja. Ele a torna mãe fecunda, capaz de gerar novos filhos ao Senhor nas águas maternais do batismo. Santo Ambrósio, nas suas catequeses mistagógicas sobre a iniciação cristã, descreve o encontro pessoal do neo-batizado com Cristo na eucaristia como o encontro apaixonado do amado com a amada do Cântico dos Cânticos! [1]
É a noite-dia em que também os “fieis” são chamados a renovar seu compromisso batismal (renovação das promessas batismais), pois o batismo é a fonte que alimenta toda experiência espiritual cristã.
A vigília se articula em quatro etapas que bem representam o caminho da iniciação e o do progresso espiritual ao longo da vida: liturgia da luz – liturgia da palavra – liturgia batismal – liturgia eucarística.
Quatro linguagens rituais para celebrar o único mistério de Cristo morto e ressuscitado, Elas destacam a passagem do batizado de uma existência nas trevas e na morte do pecado para uma vida nova em Cristo, para viver como ressuscitados.
- Liturgia da luz: Uma luz nasce de repente no coração da noite. Do círio pascal, símbolo de Cristo, recebem luz as velas de toda a assembléia que se põe a caminho. A reação frente a tamanho dom de Deus é o grito de alegria do “Exultet”, quase contraponto ao grito sofrido da Sexta-feira santa e ao silêncio adorante do sábado.
- Liturgia da Palavra: As sete leituras do AT e as duas do NT constituem a profunda contemplação das etapas de toda a história da salvação, desde a criação do mundo, através da história de Israel no AT, até à ressurreição de Jesus, e à proclamação que os batizados participam por graça à ela, iniciando o caminho do novo povo de Deus (Rm 6,3-11). A vida espiritual do cristão é continuidade e realização da mesma e única história da salvação, na espera do seu cumprimento com a vinda gloriosa de Cristo.
- Liturgia batismal: Constitui a passagem forte da vigília pascal. É a meta da longa preparação quaresmal para os catecúmenos, assim como para os já batizados.
O processo de preparação – como vimos, ao seguir a estrutura dos domingos da quaresma – destacou os variados horizontes e exigências para entrar na experiência sacramental e de relação pessoal com Cristo, e fazer desta relação a fonte e o critério de uma nova existência.
A renovação das promessas do batismo por parte de toda a assembléia abre estes horizontes, destaca estas exigências, confirma esta graça.
- Liturgia eucarística. Partilhar o corpo e o sangue do Senhor à mesa do altar é o dom supremo que os neo-batizados e os renovados na graça do batismo vão receber do próprio Cristo ressuscitado. Eles são introduzidos no mesmo dinamismo do Senhor. “Quando vai receber o corpo de Cristo nas mãos – sublinha Santo Agostinho aos recém-batizados – e ouvis o sacerdote dizer “É o corpo de Cristo”, tu respondes “Amém”. Tu recebes o corpo de Cristo, que sois vós”.
A nova existência alimentada pelo Espírito do Ressuscitado é vivificada por um novo dinamismo que produz os frutos do Espírito: alegria, paz, confiança filial, solidariedade fraterna.
O canto do Aleluia constitui o emblema da Páscoa e da vida nova em Cristo. Brota da alegria da fé, se irradia através da vida renovada, antecipa a plenitude da esperança: “A Paixão do Senhor mostra-nos as dificuldades da vida presente, em que é preciso trabalhar, sofrer e por fim morrer. A ressurreição e glorificação do Senhor nos revelam a vida que um dia nos será dada... É isto o que todos nós exprimimos mutuamente quando cantamos: Aleluia! Louvai o Senhor!... Mas louvai com todas as vossas forças, isto é, louvai a Deus não só com a língua e a voz, mas também com a vossa consciência, a vossa vida, as vossas ações. (S. Agostinho, Com. Salmos, 148 1-2; 5a Semana do Tempo Pascal, Sábado LH II, pg 779).
“Ó Deus, por vosso Filho unigênito, vencedor da morte, abristes hoje para nós as portas da eternidade. Concedei que, celebrando a ressurreição do Senhor, renovados pelo vosso Espírito, ressuscitemos na luz da vida nova” (Domingo de Páscoa, Oração do dia).
Notas:
1. Santo Ambrósio, Os sacramentos e os mistérios; Introdução e tradução por Dom Paulo Evaristo Arns – Comentários por Dom Geraldo Majella Agnelo ; Editora Vozes 1981
Fonte: Zenit
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