sábado, 21 de novembro de 2015

A Solenidade de Cristo Rei provoca-nos em profundidade

As múltiplas convulsões sociais, a violência e as guerras, atentados, morte implacável de inocentes, todos assuntos que já nos provocaram reflexões e busca de caminhos têm causado grande perplexidade em todo o mundo. Há poucos dias a França foi banhada em sangue, refletindo os subterrâneos de embates ideológicos e religiosos, ao mesmo tempo em que verdadeiras hordas de migrantes, exilados e refugiados encarnam um êxodo inimaginável há pouco tempo. Que soluções podem ser oferecidas? E, mais ainda, qual a resposta a ser oferecida por quem acredita em Jesus Cristo, aquele que veio trazer a paz e é, ele mesmo, a nossa paz? Sabemos que ele não oferece a paz como o mundo a procura e pretende oferecê-la. São tímidas, incertas e frágeis as tratativas diplomáticas possíveis em nosso tempo. As respostas dadas, com mais dureza e violência da parte de quem é reconhecido como autoridade, revelam-se incapazes, justamente porque a força utilizada suscita outras muitas reações, que nós cristãos sabemos serem inspiradas pelo pai da mentira, cujas tentações continuam atraindo grandes e pequenos, ricos e pobres.
O relato da condenação de Jesus, no Evangelho de São João (Cf. Jo 18, 33-37) traz um intrigante diálogo entre Pilatos, o tribuno, e Jesus, preso e amarrado, coroado de espinhos, ensanguentado. O assunto é o reino daquele que foi escorraçado pela plebe, soldados e autoridades. Parece ridículo, mas Jesus Cristo tem a ousadia de dizer-se rei, numa situação trágica, que beirava a morte, que efetivamente veio horas depois. No entanto, é com verdadeira majestade que ele se diz rei! O incômodo ficou por conta da covardia daquele que lavou as mãos, incapaz de defender o que lhe trazia verdadeira crise interior. Há entretanto uma diferença fundamental entre o reino conhecido e participado por Pilatos e aquele que ali se inaugurava, colorido de sangue. O de Jesus não é reino deste mundo. Ele não possui exércitos armados para defender suas fronteiras e propriedades. Todo o Evangelho no-lo mostra apaixonado pelo Reino, explicado de inúmeras formas através de gestos e palavras. O seu Reino é o reino da verdade, da justiça, do amor e da paz.
Um raciocínio bem humano pode levar-nos a comparar os muitos reinos que se edificaram na história, estampados nos poderes hoje existentes, com seus pés de barro (Cf. Dn 2, 31-35) que os fazem ruir mais cedo ou mais tarde, com o Reino de Deus, cujo anseio de repete insistentemente em nossa oração diária do Pai nosso. Quem é mais poderoso? De que vale pedir o Reino de Deus, quando os poderes do mundo é que estão controlando tudo, ainda que nos conduzam a um verdadeiro beco sem saída? Quais são as condições dos donos do poder e do dinheiro para resolverem os impasses do tempo hodierno?
É realista e ao mesmo tempo doloroso constatar que os séculos passados e o tempo recente mostram os resultados do afastamento dos valores do Evangelho. Não se trata de amaldiçoar ninguém, mas parece ressoar em nossos ouvidos a palavra de nossos pais, que recomendavam não brincar com fogo! Brincamos com o fogo do ódio, da violência, da afirmação egoísta dos próprios direitos e espaços, julgamo-nos proprietários da vida, ridicularizamos as verdades sagradas, e o resultado está aí!
Vamos começar de novo? Vamos buscar caminhos diferentes? A Solenidade de Cristo Rei provoca-nos em profundidade. Começar de novo significa ir atrás dos valores esquecidos. Eles podem chamar-se, por exemplo, perdão e reconciliação, exercício da misericórdia. Quando o Papa Francisco se inclina para lavar os pés dos presos, a imagem corre o mundo, deixando boquiabertos muitos marmanjos do poder e do dinheiro! Quando proclama um Ano Santo, Jubileu da Misericórdia, convidando-nos a passar pela porta santa de nossas catedrais e santuários, indicando-nos o roteiro mais simples que possa existir, feito de peregrinação, confissão, comunhão, oração, prática da caridade, nas obras de misericórdia, não inventou nada de novo, além do que está no Evangelho. As soluções podem ser mais fáceis do que pensamos!
Começar de novo significa tomar iniciativas, criatividade, visitar, dialogar antes de estabelecer julgamentos, buscar as razões do outro, permitir que ao meu lado exista gente que pensa diferente, construir pontes de relacionamento. Há impasses internacionais, como os grupos e ideologias pretendentes à hegemonia, cuja condição é a total destruição dos outros, há o poder do dinheiro, com as negociatas secretas em que armas são igualmente vendidas para antagonistas de todas as cores. Mais perto de nós, na propalada crise política e econômica em que nos encontramos, o impasse se agrava e as soluções ficam distantes, justamente porque o reino, que não é o de Deus, está dividido, pelos interesses individuais ou de grupos que sobrepõem ao bem comum. As fatias valem mais do que o próprio bolo! É que as receitas são interesseiras e maldosas. Mesmo que pensem ser ingênua nossa proposta, não há remédio sem passar pela conversão ao Reino... de Deus! É preciso reaprender o Pai nosso e dizer "Venha a nós o vosso Reino!"
Há alguns anos, fui pároco numa cidade em que os dois chefes políticos eram inimigos figadais, ainda que filho e filha, respectivamente, fossem casados. Passadas as eleições, os dois eram amigos, passavam horas jogando cartas e trocando ideias, mas as relações provincianas do ambiente em que viviam "pediam" briga no período eleitoral. Parece brincadeira, mas tais situações se repetem perto de nós. Só que as inimizades se multiplicam, infelizmente, e alcançam dimensões inimagináveis. De roldão, joga-se pelo ralo o bem comum e a dignidade dos mais pobres. E o mundo parece feitos de meninos de rua jogando pedras nos vizinhos. É o reino dos dois lados! Cresce, então, o reino da mentira. Se sabemos que Deus é o Senhor da história, e a vitória final será daquele a quem pertence a honra, o poder e a glória, sabemos também o quanto o tentador age e suscita intrigas em nosso mundo.
É de São João Paulo II uma palavra forte, pronunciada profeticamente no início de seu pontificado: "Não tenhais medo de acolher Cristo e de aceitar o seu poder! Não, não tenhais medo! Antes, procurai abrir, melhor, escancarar as portas a Cristo! Ao seu poder salvador abri os confins dos Estados, os sistemas econômicos assim como os políticos, os vastos campos de cultura, de civilização e de progresso! Não tenhais medo! Cristo sabe bem 'o que é que está dentro do homem'. Somente Ele o sabe!" E não tenhamos receio de rezar o Pai nosso, para dizer com mais força ainda: "Santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu".

 Dom Alberto Taveira Correa, arcebispo metropolitano de Belém do Pará

Nenhum comentário:

Postar um comentário