Que quer dizer “ser artista”? Quem é artista? No mundo contemporâneo, surgiu a opinião de que a condição de artista não é uma condição particular, mas que todo mundo é artista, já que não servem talentos nem formação, sendo o único ingrediente necessário a criatividade livre de todo esquema. Nas biografias de muitos artistas do século XX, surgem também hábitos desordenados, atitudes excêntricas, comportamentos autodestrutivos, até o ponto de que parecer que esse tipo de vida fosse um ingrediente necessário para reconhecer o verdadeiro artista, seja um pintor, um escultor, um músico ou um poeta.
Mas além dessas posições, evidentemente pouco consistentes, permanece a pergunta: quem é o artista? A isso podemos acrescentar uma pergunta posterior, fundamental para nossas reflexões: quem é o artista cristão? Na arte cristã, ou na arte que está a serviço da Igreja e que durante séculos tem sido capaz de anunciar Cristo e alçar um hino de louvor a Deus através de inestimáveis obras, há regras ou princípios que identificam a identidade profissional, moral e espiritual do artista?
Podemos encontrar uma ajuda para nossa reflexão no Livro de pintura escrito por Cennino Cennini no final do século XIV. Ele insere a história do nascimento da arte nos acontecimentos da criação narrados no Gênesis e estabelece uma reflexão da prática artística de tipo moral: a arte não se consegue com sede de lucro, nem por vanglória, mas com uma humildade e uma perseverança tais como para suportar todo sacrifício necessário para aprender todas as regras e pôr em prática todos os princípios.
Pode-se encontrar mais ajuda à reflexão no Livro de pintura de Leonardo da Vinci, ou na recopilação póstuma de seus apontamentos e seus estudos realizada pelo aluno Francesco Melzi, da qual temos uma cópia no Codice Urbinate 1270, conservado na Biblioteca Vaticana, de que Carlo Pedretti proporcionou uma edição crítica em 1995. Leonardo indica ao artista um caminho de formação técnica e moral, onde têm uma função fundamental as regras e os princípios levados à prática até se converter em virtude.
As certezas de Cennini e de Leonardo se apoiavam em uma sólida tradição, que não colocava em dúvida a importância das regras de formação. Na antiguidade, podemos encontrar exemplos notáveis disso em Vitruvio e Plinio, mas também em Columela, no que se refere à arte da agricultura. Trata-se de uma tradição que, com inovações e novas perspectivas, chega até o século XX, testificada por inumeráveis tratados.
Desta tradição podemos extrair a importância do binômio arte e normas, e sobretudo podemos compreender quão libertador resulta esse enfoque para a criatividade do artista. Na longa história das artes, as normas têm desempenhado a importante função de formar os artistas, de fazer crescer sem oprimir, de soltar sem atar.
As normas traçam um percurso, fazendo acessível uma técnica que pode se converter na base da ação, na condição de possibilidade para o crescimento. Hoje, conseguimos entender a importância da técnica e de suas normas apenas em âmbitos muito restritos. Um exemplo é o mundo do esporte: no atletismo, no futebol... a boa execução se alcança porque é também um gesto técnico. De fato, sim uma adequada preparação técnica, não se pode praticar nenhum esporte.
No âmbito das artes, os exemplo se fazem mais difíceis. Na música continua sendo mais evidente a necessidade de possuir a linguagem e sua técnica. No âmbito da pintura, em contrapartida, as regras do mercado tomaram a dianteira, ajudadas pelos críticos que teorizam que a arte não deve ter mais vínculos nem princípios além dos – imperativos, porém não especificados – do próprio mercado. Assim é como a tão reclamada liberdade do artista de toda norma se traduz frequentemente de maneira paradoxal em dependências de todo tipo não-artísticas, como o álcool, as drogas ou outras relações que atingem radicalmente a liberdade da pessoa, ofuscando sua razão. Por outro lado, as teorias artísticas que destacam com obsessiva recorrência que o artista é um ser inadaptado e solitário acabam quase por prescrever o mal-estar psíquico e existencial como um requisito fundamental. Assim, a arte, que deve dar felicidade, converte-se em um labirinto de dor, totalmente atravessado pela ânsia de êxito. Desta maneira, à figura do artista se sobrepõe a do Fausto, disposto a fazer pacto com o Diabo, ou a de Prometeu, que desafia os deuses ao roubar-lhes o fogo.
O centro do percurso criativo do artista, em um contexto assim, é o próprio artista. Em um total egoísmo, a arte expressa o eu do artista e nada mais. Se pensarmos bem, em contrapartida, compreendemos que o artista, para sê-lo, deve possuir as regras de seu ofício, e que o pressuposto para rompê-las e superá-las é conhecê-las com precisão. Ademais, o mal-estar e a perversão não são pedidos ao artista enquanto tal, mas só ao artista tal como é teorizado por alguns críticos e comerciantes contemporâneos.
Se essas observações valem para o artista em geral, ainda mais para o artista cristão. Pode-se falar de Cristo a partir dessas posições teóricas e chegar aos cumes da arte sacra cristã? Pode o artista que trabalha para a Igreja ser identificado com a libertinagem, a ignorância de seu ofício, o narcisismo? Não estamos falando de juízo sobre a vida do artista, porque isso não deveria interessar ao historiador nem ao teórico da arte, mas estamos refletindo precisamente sobre as obras de arte, sobre a possibilidade de que sem uma formação técnica e artística, e sem virtudes cultivadas, se possam produzir obras belas adaptadas à oração e à liturgia. Ademais, acrescentando uma consideração mais importante, e é que para trabalhar para Cristo, em todo âmbito, é necessária uma adesão ao próprio Cristo. Com muita clareza, Joseph Ratzinger explica que a sacralidade da imagem implica a vida interior do artista, seu encontro com o Senhor: “A sacralidade da imagem consiste precisamente no fato de que esta deriva de uma visão interior e assim conduz a uma visão interior. Deve ser fruto de uma contemplação interior, de um encontro crente com a nova realidade do Ressuscitado e, dessa maneira, deve introduzir novamente no olhar interior, no encontro orante com o Senhor” (Joseph Ratzinger, Teologia della liturgia, Libreria Editrice Vaticana, 2010, p. 131). Acrescenta também que “a dimensão eclesial é essencial na arte sacra” (ibid.), destacando que o artista cristão não pode viver fora da Igreja.
Jesus, no Evangelho de Lucas, adverte: “onde estiver o seu tesouro, aí estará o seu coração” (Lc 12, 34). Se nosso tesouro não é Cristo, mas nós mesmos, nossos vícios, o êxito, então não se tem o coração apto para a produção de obras de arte sacra. Ainda nos ensina Jesus que “nenhum criado por servir a dois senhores (...). Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16, 13). Portanto, o artista cristão deve fazer a opção radical de pôr Cristo como único Senhor de sua vida e arte. Isso implica também a humildade de uma percurso de formação artística, moral e espiritual, com a convicção de que o trabalho artístico é uma vocação: “Como bons administradores da multiforme graça de Deus, cada um coloque à disposição dos outros o dom que recebeu. Se alguém tem o dom de falar, fale como se fossem palavras de Deus. Se alguém tem o dom do serviço, exerça-o como capacidade proporcionada por Deus, a fim de que, em todas as coisas, Deus seja glorificado, por Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o poder, pelos séculos dos séculos. Amém” (1 P 4, 10-11).
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* Rodolfo Papa é historiador da arte, professor de história das teorias estéticas na Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Urbaniana, em Roma; presidente da Accademia Urbana delle Arti. Pintor, autor de ciclos pictóricos de arte sacra em várias basílicas e catedrais. Especialista em Leonardo Da Vinci e Caravaggio, é autor de livros e colaborar de revistas. Desde 2000, assina uma coluna de história da arte cristã na Rádio Vaticano.
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