A experiência vivida quando jovem, quando fugia das autoridades comunistas para ir à Missa, gerou no atual bispo auxiliar de Karaganda uma particular devoção pela Eucaristia, que ele se alegra de poder partilhar com todos.
Dom Athanasius Schneider é secretário-geral da Conferência Episcopal do Cazaquistão e autor do livro "Dominus Est. It is the Lord: Reflections from a Bishop in Central Asia on Holy Communion" (Newman House Press, 2009).
Nascido no Quirguistão, onde seus pais eram exilados do regime comunista, emigrou para a Alemanha em 1973, transferindo-se em seguida para a Áustria para ser admitido no mosteiro dos Cônegos Regulares da Santa Cruz.
Dom Schneider leciona teologia no seminário Mary, Mother of the Church de Karaganda desde 1999. Sua ordenação episcopal deu-se em Roma, em 2 de junho de 2006.
Nesta entrevista concedida ao programa televisivo "Deus chora na terra", produzido pela Catholic Radio and Television Network (CRTN) em colaboração com a associação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), o bispo fala de sua experiência na Igreja sob o regime comunista, da trajetória que o conduziu à sua função atual e das necessidades da comunidade do Cazaquistão.
Quando se ouve falar sobre o Cazaquistão, não se pensa de imediato nos católicos; contudo, a Igreja Católica tem profundas raízes na cultura do país. O senhor poderia falar sobre a história da Igreja Católica no Cazaquistão?
Dom Schneider: Eu gostaria de precisar: não somente a Igreja, mas o próprio cristianismo tem lá raízes muito profundas.
Já nos séculos III e IV havia sinais do cristianismo na Ásia Central, e durante Idade Média houve também missionários de rito latino na região. Mas a presença em ampla escala do cristianismo e, principalmente, dos católicos, remete ao regime de Stálin.
No final dos anos 30, Stálin ordenou a deportação de milhões de europeus ao Cazaquistão, que se tornou um enorme campo de concentração, no qual se fixou cerca de meio milhão de católicos.
Esta presença, porém, era marcada pelo sofrimento, e a Igreja só podia existir na clandestinidade.
O senhor é alemão. Como chegou ao Cazaquistão?
Dom Schneider: Meus pais viviam nos assentamentos alemães no Mar Negro, próximos a Odessa. Pouco antes do final da 2ª Guerra Mundial, as forças armadas alemãs transferiram todos estes assentados para Berlim, a fim de protegê-los dos russos.
Quando finalmente o exército russo ocupou Berlim, estas pessoas foram feitas prisioneiras e levadas para campos de trabalhos forçados, localizados no Cazaquistão, na Sibéria e nos Urais.
Meus pais foram enviados aos Montes Urais, onde foram obrigados a trabalhar; é um milagre que tenham sobrevivido. Após serem liberados, rumaram para a região da Ásia Central, que à época integrava a União Soviética. Instalaram-se onde hoje é o Quirguistão, uma pequena república próxima à fronteira com a China, ao sul do Cazaquistão.
Foi lá que nasci e vivi minha infância. Mais tarde, do Quirguistão fomos transferidos para a Estônia, que era ainda parte da URSS. Lá vivemos por quatro anos.
A igreja mais próxima estava a 100 quilômetros de distância, e somente nela era possível participar da Missa.
Todos os domingos percorria 100 quilômetros?
Dom Schneider: Somente uma vez por mês, não era possível ir sempre. Éramos quatro filhos e meus pais.
E como se deslocavam, de automóvel?
Dom Schneider: De trem. Mas às vezes a viagem se tornava perigosa, porque o governo comunista proibia as crianças de participar da Missa.
Apenas os adultos podiam ir, mas, como disse, éramos quatro crianças. Então meus pais decidiam tomar o primeiro trem da manhã, quando ainda estava escuro, para que não chamássemos tanta atenção. Sempre me lembrarei de nossa primeira viagem; tornou-se inesquecível para mim.
À época era um garoto de 10 ou 12 anos, e estas viagens para participar da Santa Missa me marcaram profundamente. Na volta, tomávamos o último trem, à noitinha, quando o céu já estava escuro.
Passávamos estes domingos junto a nosso pároco, que dispunha apenas de uma pequena sala - não uma casa, mas uma saleta, que era ao mesmo tempo sua cozinha, quarto de dormir e biblioteca. Ficávamos com ele porque éramos a família que vinha de longe.
Foi ali que fiz minha primeira confissão e recebi minha Primeira Comunhão, com este sacerdote, que inclusive esteve preso em Karaganda.
Quando estava no Brasil, seu superior o enviou a Roma para que prosseguisse nos estudos, quando realizou seu doutorado em Patrologia [1]. Durante este período em Roma, o senhor foi nomeado conselheiro geral da Ordem, e sonhava em poder voltar ao Brasil ao final do mandato. Mas encontrou alguém que fez seus planos mudarem. Como foi?
Dom Schneider: Sim, me disseram que havia um sacerdote recém-chegado do Cazaquistão (nunca havia estado no Cazaquistão, apenas no Quirguistão). Disseram-me que desejava falar comigo - não nos conhecíamos.
Ele então me disse: "Acabamos de instituir um seminário em Karaganda e não temos professores. Poderia nos ajudar?". E assim me convidou.
Como descreveria a fé deste povo?
Dom Schneider: A fé de nosso povo é marcada pela dor e por mártires - testemunhas da fé e da situação de perseguição da Igreja. As pessoas buscam manter viva esta fé, vivê-la, dar grande valor aos sacramentos, à sacralidade, à dignidade do sacerdote.
A ex-União Soviética sofreu com 70 anos de ateísmo de Estado. São ainda visíveis as feridas deixadas nos corações das pessoas?
Dom Schneider: Como consequência deste ateísmo, intrinsecamente materialista, foram destruídos o sobrenatural, os valores espirituais. Por exemplo, o alcoolismo se disseminou enormemente, uma vez que a vida das pessoas havia perdido sentido uma vez destituída de seu valor espiritual.
Criou-se um vazio, ampliado durante os tempos de comunismo. A família foi destruída pelo materialismo; difundiram-se amplamente práticas como o divórcio e o aborto.
O senhor é autor do livro "Dominus Est. It is the Lord: Reflections from a Bishop in Central Asia on Holy Communion", no qual sustenta uma eventual revisão da prática de receber a Comunhão com as mãos, e se não seria mais adequado recebê-la, como se fazia no passado, diretamente na boca e de joelhos. Poderia dizer algo a respeito?
Dom Schneider: Para mim isto não é novidade; é como a vivenciei durante toda minha vida. Recebia a Santa Comunhão durante o período de perseguição, e esta forma de devoção era para mim absolutamente natural.
Sempre me foi dito de que ali estava realmente presente Deus. Era, portanto, de todo natural que nos ajoelhássemos diante do Santíssimo.Também minha mãe agia assim, nos tempos da perseguição. Certa vez salvou um sacerdote que fugia da polícia, nos Urais, para onde fora deportada. Quando mais tarde o padre precisou partir, minha avó, que estava muito doente, pediu à minha mãe que conseguisse com ele uma hóstia consagrada, para que pudesse receber a Santa Comunhão em seu leito de morte. O sacerdote respondeu: "Sim, deixarei com você uma hóstia consagrada, mas com a condição de que a administre com o maior respeito possível".
Minha mãe então deu a Santa Comunhão à minha avó; para manipulá-la, vestiu um par de luvas novas, para não tocar a hóstia com as mãos. Não ousava tocar no Santíssimo Sacramento com as mãos, e por isso usou uma colher para administrá-lo.
Este sentimento era tão profundo e natural para nós, que ao ver as celebrações nas igrejas ocidentais, mais do que surpresos, sentimos uma dor no coração. Não julgo aqueles que recebem a Comunhão nas mãos: esta é uma outra questão, uma vez que se pode recebê-la desse modo, com o mesmo respeito e o mesmo amor. Refiro-me à situação objetiva em que a Santa Comunhão era distribuída; era inegável que tinha havido uma banalização - era como distribuir fatias de torta.
Este é o Senhor. Quando o Senhor ressuscitado apareceu às mulheres e estas o reconheceram, elas se ajoelharam.
Caíram de joelhos.
Dom Schneider: Caíram de joelhos e o adoraram.
E também os Apóstolos fizeram o mesmo quando o Senhor ascendeu ao Céu. Por que não deveríamos nós fazer o mesmo?
Eis o Senhor, realmente presente como tem sido há milênios na Igreja Católica. Por que deveríamos mudar isso?
Que apelo gostaria de fazer aos católicos? Quais são as necessidades da Igreja no Cazaquistão?
Dom Schneider: Certamente o apelo a orarem. Pois as orações constituem o dom mais precioso que podemos oferecer uns aos outros, em solidariedade à Igreja local, tão distante e em situação difícil. Contamos com pouquíssimos recursos humanos e materiais. Pedimos orações pelas vocações sacerdotais locais.
Necessitamos de um clero local, pois só assim a Igreja poderá fixar suas raízes. E por favor, se possível, que nos apoiem em nossos esforços de construir mais igrejas, para tornar a Igreja mais visível nesta parte do mundo em que vivemos, como símbolo de evangelização.
Somos gratos por todas estas demonstrações de fraternidade e solidariedade.
Fonte: Zenit.
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