O rei de Marrocos, Mohamed VI, parece ter vencido a sua aposta: o sim varreu o não no referendo sobre o projeto de uma nova Constituição [1], em votação acontecida na sexta-feira, 1º de julho. Segundo o ministro do Interior, Taieb Cherqaoui, com 94% dos votos contados já havia mais de 98,4% de aprovação à reforma constitucional promovida pelo atual monarca.
O comparecimento às urnas foi alto: de 13.106.948 de eleitores inscritos, 9.228.020 exerceram o direito de votar, uma taxa de participação de 72,65%. Nas últimas legislativas (7 de setembro de 2007), só 36% do eleitorado tinha votado.
A consulta popular foi a vigésima sétima do Marrocos pós-independência. Segundo Le Matin (30 de junho), em todo o território nacional foram instalados 40.000 colégios eleitorais, dos quais 3.400 na “wilaya” ou província da Grande Casablanca, maior cidade do país, e 900 na capital, Rabat. Outros 520 acolheram o voto dos MRE (marroquinos residentes no exterior), em consulados e embaixadas do reino espalhadas pelo mundo.
O referendo tinha crucial importância para Mohamed VI. Após os protestos de praça do levantamento de 20 de fevereiro, fruto da onda revolucionária que percorreu o mundo árabe, o rei anunciou, em 9 de março, a criação de uma “comissão 'ad hoc' para a revisão da Constituição”, presidida por Abdeltif Mennouni, professor de Direito Constitucional na Universidade Mohamed V de Rabat [2].
Mohamed VI apresentou, em 17 de junho, o projeto de uma nova Constituição elaborada pela comissão Mennouni e anunciou a convocação de uma consulta popular sobre a primeira Constituição da história do país “feita pelos marroquinos para todos os marroquinos” [3].
A sexta Carta Magna de Marrocos substitui a atual Constituição de 1996. O primeiro ministro Abbas El Fassi, em entrevista ao jornal Aujourd'hui Le Maroc (21 de junho), definiu-a como uma "mudança histórica".
Declarando-se “muito satisfeito”, o primeiro-ministro destacou que a reforma responde às “reivindicações dos partidos políticos, dos sindicatos e da sociedade civil”. O editorial de 23 de junho do mesmo periódico diz: “Esta Constituição fará do nosso país, permanecendo no perímetro da primavera árabe, a primeira democracia do mundo árabe”.
A reforma constitucional lançada por Mohamed VI apresenta, de fato, várias novidades. A língua berbere, falada por uma importante parcela da população, se torna língua oficial junto com o árabe, “patrimônio comum a todos os marroquinos sem exceção” (art. 5). O texto também fala da igualdade de homens e mulheres e prevê a criação de “uma autoridade para a paridade e a luta contra todas as formas de discriminação” (art.19).
Outra novidade do texto é o “direito à vida, o primeiro direito de todo ser humano”. “A lei protege este direito”, diz o art.20. Respondendo à pergunta de Le Figaro (30 de junho), o presidente da comissão ad hoc, Abdeltif Mennouni, especificou que o texto pretende dar fim à pena de morte em Marrocos, onde a última execução aconteceu em 1993. “Ao escrevermos o artigo, pensamos na total abolição da pena de morte”, disse o constitucionalista. “Depois do referendo, passamos a bola para o Parlamento”.
Sobre o plano político, a nova Carta Magna de Rabat aumenta os poderes do primeiro-ministro, que se torna “chefe de governo” e deverá ser nomeado pelo rei “no partido mais votado nas eleições dos membros da Câmara dos Representantes” (art.47).
Para os analistas, o rei continua com amplos poderes e ainda dominará o panorama institucional. Embora sua pessoa não seja mais tida como sagrada, ele permanece “inviolável” (art.46). O soberano conserva os títulos de Comandante dos Fiéis, presidente do Conselho Supremo dos Ulemás (art.41), Chefe do Estado e Garante da Independência e da Integridade Territorial do Reino (art.42), além do papel de guia religioso e político. O rei preside não só o Conselho de Ministros (art.48) e nomeia vários cargos públicos (art.49), mas também controla o novo Conselho Superior de Segurança (art.54) e o Conselho Superior do Poder Judiciário (art.56).
A nova Constituição, por isso, é considerada por muitos uma manobra para “evitar a revolução” (ABC, 29 de junho). “O que Mohamed desbloqueia por um lado, bloqueia pelo outro”, afirma Marie-Christine Corbier no periódico financeiro francês Les Echos (29 de junho). Para o pediatra e ativista pró-direitos humanos Nordin Dahhan, a reforma constitucional é uma “farsa” (De Volkskrant, 1º de julho). O conhecido blogueiro marroquino Larbi rejeita o texto: “Estávamos sob um regime de monarquia com amplos poderes, em que o rei era o chefe do executivo, e permanecemos sob o mesmo regime, mas com retoques na fachada”, explica ele num artigo intitulado “Pourquoi je rejette la Constitution Mohamed VI” [Por que eu rejeito a Constituição de Mohamed VI] (18 de junho).
Contrário à nova Constituição é também o movimento islamista Justiça e Caridade (não confundir com o partido islamista da Justiça e do Desenvolvimento - PJD -, que apoia a reforma). “Os espanhóis ou os franceses viveram sob uma Constituição como a apresentada por Mohamed VI aos marroquinos?”, pergunta o porta-voz Fatallah Arsalan (ABC).
A nova Carta Magna decepciona, sem dúvida, no que se refere à liberdade de religião, ausente no texto. O Preâmbulo confirma a “preeminência decidida à religião muçulmana”, que permanece (como diz o art. 3) como “a religião do Estado, que garante a todos o livre exercício dos cultos”, uma frase que já figurava na Constituição de 1996. Como recorda Ali Amar no Slate Afrique (29 de junho), o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (PJD), que diz proclamar um islamismo moderado, ameaçou retirar seu apoio ao projeto de reforma se a liberdade de religião fosse escrita na Lei Fundamental.
Ainda que o reino se comprometa no Preâmbulo a “proibir e combater toda discriminação contra qualquer um”, entre as quais está a discriminação baseada nas crenças, converter-se a outra religião ainda é tabu. Um exemplo é Jamaa Ait Bakrim, que está cumprindo, no maior presídio do Morrocos – a prisão central de Kenitra – uma condenação de 15 anos por “proselitismo” e destruição de “propriedade alheia”: o homem tinha tirado duas velhas luminárias que não funcionavam diante do seu comércio, as quais as autoridades tinham se negado a retirar (Compass Direct News, 17 de septiembre de 2010).
Voltando a Mohaned VI, a grande pergunta agora é se sua reforma bastará para silenciar as vozes dos que pedem uma verdadeira democratização e o fim do sistema feudal ou “makhzem”, no Marrocos. A proposta social implica também um custo econômico. Segundo o ministro dos Assuntos Econômicos e gerais, Nizar Baraka, no primeiro trimestre de 2011 o número de greves aumentou 77,78% em relação ao mesmo período de 2010 (Aujourd'hui Le Maroc, 30 de junho).
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[1] Texto pode ser baixado em: http://www.maroc.ma/NR/rdonlyres/EE8E1B01-9C86-449B-A9C2-A98CC88D7238/8650/bo5952F.pdf
[2] http://www.bladi.net/discours-du-roi-mohamed-vi-9-mars-2011.html
[3] http://www.bladi.net/discours-mohammed-6-17-juin-2011.html
Fonte: Zenit.
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