Carta do cardeal William J. Levada, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, publicada em 6 de julho em L'Osservatore Romano. Por ocasião do encontro inter-religioso de Assis em 27 de outubro, ele reflete sobre o diálogo com as outras religiões.
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O anúncio da “Jornada de reflexão, diálogo e oração pela paz e pela justiça no mundo”, em Assis no próximo outubro, mostra que a experiência religiosa nas suas diversas formas é objeto da atenção da Igreja no terceiro milênio. Diante da atual difusão do ateísmo e do agnosticismo, é necessário ajudar o homem a salvaguardar ou reencontrar a consciência do seu vínculo elementar (re-ligio) com a própria origem. Esta consciência, que se faz naturalmente orante, é uma condição da paz e da justiça no mundo.
Em seu livro-entrevista de 1994, o beato João Paulo II relembra o encontro de Assis de 1986, que, junto com as visitas a países do Extremo Oriente, o convenceu, mais ainda, de que “o Espírito Santo trabalha eficazmente mesmo fora do organismo visível da Igreja”. Porém, consciente da delicadeza do argumento, ele ensinou na encíclica Redemptoris missio que o Espírito “se manifesta de modo particular na Igreja e nos seus membros; mas a sua presença e ação são universais, sem limite algum nem de espaço nem de tempo”. Referindo-se ao Concílio Vaticano II, ele recordou “a ação do Espírito no coração do homem, mediante as 'sementes da Palavra', inclusive nas iniciativas religiosas, nos esforços da atividade humana encaminhados à verdade, ao bem e a Deus”, que faz “amadurecer em Cristo” (nº28). Na mesma encíclica, depois, não só reafirmou a necessidade e a urgência do anúncio da Boa Nova de Jesus, mas a contrastou com uma “mentalidade indiferentista, amplamente difundida inclusive entre os cristãos, enraizada em concepções teológicas não corretas e marcada por um relativismo religioso que leva a pensar que 'uma religião equivale a outra'” (nº36).
Em sintonia com esta preocupação está a reflexão teológica e pastoral de Joseph Ratzinger. Já em 1964, ele manifestou a tentativa de “definir com maior precisão a posição do cristianismo na história das religiões e dar sentido mais concreto às enunciações teológicas sobre a unicidade e o absoluto do cristianismo” (J. Ratzinger, Fé, Verdade, Tolerância. O Cristianismo e as religiões do mundo, 17).
A Congregação para a Doutrina da Fé, por ele dirigida, retomará este tema com a declaração Dominus Iesus sobre a unicidade e a universalidade de Jesus e da Igreja. O documento, publicado em 6 de agosto de 2000, não pretendia só refutar a idéia de uma coexistência inter-religiosa em que várias “crenças” seriam reconhecidas como vias complementares à fundamental que é Jesus Cristo (cfr. João 14, 6); pretendia, mais profundamente, estabelecer as bases doutrinais de uma reflexão sobre a relação entre o cristianismo e as religiões. A pessoa do Verbo encarnado é absolutamente única; a obra salvífica de Jesus se prolonga no seu Corpo, a Igreja, e também esta é única no tocante à salvação de todos os homens. Para exercitar esta obra, tanto entre os cristãos como entre os não cristãos, temos sempre e somente o Espírito de Cristo que o Pai concede à Igreja como “sacramento de salvação”: não há vias complementares à única economia universal do Filho feito carne, embora fora da Igreja de Cristo se encontrem elementos de verdade e de bondade (Nostra aetate, 2; Ad gentes, 9).
O encontro de Assis teve uma segunda edição em 24 de janeiro de 2002. O cardeal Ratzinger sentiu ali a necessidade de esclarecer o significado, tornando-se intérprete dos que se interrogam seriamente a este propósito: “Podemos fazer isto? Não será que é dada à maioria das pessoas a ilusão de uma comunhão que não existe? Não se favorece o relativismo, a opinião de que no fundo só há diferenças penúltimas entre as religiões? Não se debilita assim a seriedade da fé e se afasta Deus de nós? Não se reforça o sentimento de termos sido abandonados?” (Fé, Verdade, Tolerância, 111). Aqui queremos perguntar: por quê, se estava tão atento às possíveis interpretações errôneas do seu beato predecessor, Bento XVI considerou oportuno peregrinar até Assis em novo encontro pela paz e pela justiça no mundo?
Achamos uma primeira indicação na lembrança do cardeal Ratzinger do encontro de 2002. Ele evocava a figura do homem vestido de branco, já ancião, sentado junto aos outros no trem para Assis: “Homens e mulheres, que na vida cotidiana se enfrentam não raro com hostilidade e parecem divididos por barreiras infranqueáveis, saudavam o Papa, que, com a força da sua personalidade, a profundidade da sua fé, a paixão que destilava pela paz e pela reconciliação, conseguiu o impossível graças ao carisma do seu ofício: convocar, unidos em peregrinação pela paz, representantes da cristandade dividida e representantes de diversas religiões” (30 Giorni, 1/2002). A religião está longe de distrair da edificação da cidade terrena, mas empurra para o compromisso em prol dela. Para nós, cristãos, isto significa interceder a Deus, deixando que os outros, apesar da sua diversidade, se unam a nós na busca da paz e da justiça no mundo. E, acrescentava o então cardeal, “se nós, como cristãos, empreendemos o caminho para a paz a exemplo de São Francisco, não devemos temer perder a nossa identidade: é assim que a encontramos” (ibidem).
Não se trata, em resumo, de esconder a fé para encontrar a vantagem de uma unidade superficial, mas de confessar – como então fez João Paulo II e o Patriarca ecumênico – que nossa paz é Cristo e que por isso o caminho da paz é o caminho da Igreja. O rosto do “Deus da paz” (Rm 15, 33), disse o então Joseph Ratzinger, “se fez visível a nós cristãos pela fé em Cristo (ibidem). E esta paz é uma plenitude não só oferecida e transmitida (Cf. Jo 20, 19), mas desde sempre acolhida pela Ecclesia sancta et immaculata (Ef 5, 27), como dom e como dever a respeito do mundo, que “é teatro da história da humanidade” (Gaudium et spes, 2). Recorda-nos isso o Concílio Vaticano II: “obedecendo ao mandamento de Cristo e movida pela graça e pela caridade do Espírito Santo, ela se torna atual e plenamente presente a todos os homens ou povos para os conduzir à fé, liberdade e paz de Cristo” (Ad gentes, 5). Já que “todos os homens estão chamados à unidade com Cristo” (Lumen gentium, 3), a Igreja deve ser fermento desta unidade para a humanidade inteira: não só com o anúncio da Palavra de Deus, mas com o testemunho vivido da íntima união dos cristãos com Deus. E esta é a autêntica via da paz.
O slogan escolhido para a próxima Jornada de Assis – Peregrinos da verdade, peregrinos da paz – nos oferece uma segunda indicação: para que se possa ter esperança em realmente construir, unidos, a paz, é necessário colocar os critérios da verdade. “O ethos sem o logos não existe” (J. Ratzinger, Os he llamado amigos. La compañía en el camino de la fe, 71). Instruído pelas dolorosas experiências das ideologias totalitárias, o Papa faz uma advertência perante toda forma de subordinação da razão à praxis. Mas há mais. O vínculo original entre o ethos e o logos, entre religião e razão, tem sua raiz fundamental em Cristo, o Logos divino: exatamente por isso o cristianismo é capaz de restituir ao mundo este vínculo, participando como sinal veraz e eficaz de Jesus Cristo, em sua única missão de salvação (Cf. Lumen gentium, 9). E portanto há que rejeitar decididamente “este relativismo que afeta em maior ou menor grau a doutrina da fé e a profissão de fé” (Os he llamado amigos, 71). Mas isso, longe de construir um desprezo das diversas expressões religiosas ou da dimensão ética, é uma apreciação: “devemos tentar encontrar uma nova paciência – sem indiferença – uns com os outros e pelos outros; uma nova capacidade de deixar de ser o que é o outro e a outra pessoa; uma nova disponibilidade para diferenciar os planos da unidade e, portanto, realizar os elementos de unidade que neste momento são possíveis” (ibidem). Não é possível a paz sem a verdade, e vice-versa: a atitude para a paz constitui um autêntico “critério de verdade” (J.Ratzinger, Europa. Sus fundamentos hoy y mañana, 79).
Fonte: Zenit.
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