Por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração
Apresentamos o comentário à liturgia do próximo domingo – II de Quaresma Gn 12, 1 - 4a; 2 Tm 1, 8b - 10; Mt 17, 1 - 9 – redigido por Dom Emanuele Bargellini, Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneo Santo Anselmo (Roma), Dom Emanuele, monge beneditino camaldolense, assina os comentários à liturgia dominical, às quintas-feiras, na edição em língua portuguesa da Agência ZENIT.
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DOMINGO II DE QUARESMA
Leituras: Gn 12, 1 - 4a; 2 Tm 1, 8b - 10; Mt 17, 1 - 9
Deus chama Abraão e lhe pede para abandonar sua família e sua terra, com a promessa de que o tornará abençoado e fecundo, e sinal de esperança para todos os povos. Abraão se entrega (1ª leitura). Jesus chama Pedro, Tiago e João e os leva consigo a um lugar à parte, sobre uma alta montanha, para que se tornem testemunhas da sua identidade de messias sofredor e glorioso, que há de transformar o mundo através do amor crucificado. Eles são introduzidos no mistério de Jesus (evangelho). Paulo lembra com vigor que Deus nos chamou à salvação e à santidade, não por nossos méritos, mas por sua livre e gratuita escolha, manifestada em Cristo. Ele desperta nosso estupor e gratidão (2ª leitura).
As três leituras nos oferecem uma mensagem convergente, que abre aos olhos da nossa fé o sentido profundo do caminho quaresmal e da grande celebração da Páscoa, que já se deixa vislumbrar de longe. É Deus que, na sua liberdade e condescendência, escolhe e chama as pessoas para tornarem-se seus parceiros na aventura da vida. É ele que inicia e permanece o primeiro protagonista do caminho de renovação pascal em que o cristão entrou, por graça, com o batismo: assim como chamou Abraão a viver a aventura de tornar-se pai dos que acreditam no Senhor, e como Jesus escolheu os discípulos para serem participes da sua intimidade com o Pai e da sua gloriosa transfiguração.
Cada ano e cada dia, o cristão é chamado a interiorizar sempre mais este mesmo caminho de transfiguração de si mesmo junto com Jesus, até deixar-se conformar plenamente a Ele. É preciso passar através daquele processo de fé e de amor crucificado e transformador.
A voz do Pai, que da nuvem luminosa proclama Jesus “o Filho amado no qual eu pus todo o meu agrado”, e a quem é preciso “escutar” (Mt 17,5) e seguir, confirma a primeira proclamação divina desta sua relação única com o Pai e do seu destino sofredor, feita no batismo no Jordão (cf. Mt 3,17), e antecipa a entrega confiante de Jesus ao Pai no Getsêmani: “Meu Pai, se não é possível que esta taça passe sem que eu a beba, seja feita a tua vontade” (Mt 26,42). Ao mesmo tempo a declaração do Pai antecipa também a glorificação de Jesus através da cruz na ressurreição e a sua vinda gloriosa no fim dos tempos.
O acontecimento da transfiguração se encontra assim no centro da vicissitude humana e messiânica de Jesus, quase síntese do dinamismo do seu mistério pascal. Define a sua identidade de filho amado do Pai e de Messias sofredor, solidário com a condição humana. Nesta maneira indica e abre também para nós o caminho a seguir, se de verdade queremos escutá-lo, segundo o convite do Pai. Para o discípulo não se dá um caminho diferente daquele do mestre, seja no desafio da fé assim como na partilha da glória.
A Igreja se põe diante de Jesus transfigurado na atitude de adoração e de temor, como os três discípulos, e nos convida a permanecer nesta mesma atitude desde o início do caminho quaresmal, que nos conduzirá a entrar mais profundamente, junto com o próprio Jesus, na graça da nossa transfiguração pascal.
Na antiga igreja de Santo Apolinário in Classe em Ravena, Itália [1] se encontra uma belíssima representação em mosaico do mistério da transfiguração em estilo bizantino. Com a simbólica e penetrante linguagem da arte e da beleza, a igreja nos oferece uma profunda inteligência cristológica e eclesial deste mistério.
O mosaico, colocado na ábside da igreja, ocupa o centro do espaço litúrgico que orienta a celebração da assembléia e os olhos da fé dos participantes. A parte alta e côncava do mosaico é formada por uma grande nuvem luminosa, em cima da qual aparece a mão do Pai, origem da vida, guia e meta da história. No centro da nuvem, encontra-se uma grande cruz ornada de pedras preciosas (cruz gloriosa), contida dentro um grande círculo azul cheio de estrelas. No centro da cruz está engastada a face luminosa de Cristo. Dos dois lados da cruz Moisés e o profeta Elias estão reclinados em direção da cruz/face de Cristo, quase dialogando com ele. Embaixo três ovelhas que olham para cima em direção da cruz.
Na parte baixa do mosaico, é representada uma paisagem paradisíaca, rica de árvores com frutos. Ao seu centro a imagem do bispo Santo Apolinário em postura de oração. Nos seus lados, dois grupos de seis ovelhas cada um, caminhando na direção do santo bispo.
Com certeza, somente a visão da imagem e a sua colocação no espaço celebrativo da igreja podem transmitir, com a linguagem alusiva e profunda da arte viva, o sentido místico do evento.
Talvez seja possível vislumbrar, pelo menos um pouco, como a transfiguração, colocada no contexto da celebração da eucaristia e da liturgia das horas é não somente um evento extraordinário na vida pessoal de Jesus, mas é mistério que toca o caminho interior da comunidade cristã e de cada pessoa em todo tempo. Por isso o artista não “narra” o evento no passado, reproduzindo as imagens dos protagonistas, mas os transfigura em imagens simbólicas.
A cruz gloriosa no centro do céu estrelado diz a centralidade de Cristo na criação e na história da salvação. Vislumbra o mistério da sua morte e a glória da transfiguração e da ressurreição, assim como a sua vinda gloriosa no fim dos tempos.
As três ovelhas perto da cruz indicam os três discípulos na qualidade de ovelhas, conhecidas e chamadas por Cristo Pastor, que seguem sua voz (cf. Jo 10, 14).
As doze ovelhas embaixo, recolhidas ao redor do bispo Apolinário, representam a igreja, rebanho do Senhor. Elas encontram abundante pastagem no jardim do novo paraíso, aberto por Cristo bom pastor, representado pelo bispo que intercede pela Igreja junto de Cristo.
Com a contemplação cotidiana e admirável destas imagens, o povo de Deus que celebra ou reza silenciosamente na igreja, é introduzido gradativamente no mistério de Cristo. Ao mesmo tempo fica aprendendo que em Cristo, é ele mesmo chamado a viver no seu dia a dia o mistério da sua transfiguração, enquanto é alimentado à mesa da palavra e da eucaristia, presidida pelo bispo, imagem de Cristo pastor supremo da igreja.
São Leão Magno observa que, se a principal finalidade da transfiguração era afastar dos discípulos o escândalo da cruz, “segundo um desígnio não menos previdente, dava-se um fundamento sólido à esperança da santa Igreja, de modo que todo o corpo de Cristo pudesse conhecer a transfiguração com que ele também seria enriquecido, e os seus membros pudessem contar com a promessa da participação naquela glória que primeiro resplandecera na cabeça” (Sermão 51, 3; LH, 2º Domingo de Quaresma).
Esta perspectiva exaltante é graça e vocação. É objeto do desejo mais profundo e constante da Igreja, esposa de Cristo, seu esposo, e corpo vivo dele, sua cabeça. A antífona de entrada da missa dá o tom profundo da celebração do domingo: “Meu coração disse: Senhor, buscarei vossa face. É vossa face, Senhor, que eu procuro, não desvieis de mim o vosso rosto!” (Sl 26,8-9). Hoje, constitui o anseio central da invocação da Igreja: “Ó Deus, que nos mandastes ouvir o vosso Filho amado, alimentai nosso espírito com a vossa palavra, para que, purificado o olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão da vossa glória” (Oração do dia).
Este mistério marca o presente do povo de Deus peregrino na fé, e antecipa profeticamente a sua sorte final de plena participação à glória eterna do Senhor. Deixa-nos vislumbrar ao mesmo tempo a transcendente santidade de Deus e a sua extrema proximidade na fragilidade do Verbo, que assumiu nossa condição humana. São os dois eixos que orientam e sustentam toda experiência espiritual autenticamente cristã, enquanto esta corresponde ao estilo de Deus, manifestado em Cristo.
Os símbolos da luz intensa que se irradia de Jesus, a voz do Pai que desce da nuvem luminosa, o temor que invade os discípulos, a aparição de Moisés e de Elias conversando com Jesus, conectam a transfiguração de Jesus às poderosas manifestações de Deus no Antigo Testamento (Ex 19, 16-25: aliança no Sinai; 1 Reis, 18,9-18: encontro de Elias com o Senhor no Monte Horeb), e destacam a unidade do desígnio salvador de Deus nos dois testamentos e o seu cumprimento em Jesus.
Por outra parte, o convite do próprio Jesus aos discípulos a levantarem-se e a tomarem novamente o caminho da vida sem medo - embora não consigam ainda entender - e a guardarem em silêncio no próprio coração a excepcional experiência, sublinha a fragilidade humana escolhida por Deus como hábito cotidiano para si e pelos seus.
Guardar o segredo sobre a experiência vivenciada com Jesus “até que o Filho do homem tenha ressuscitado dos mortos” (Mt 17,9) é mais que “guardar o segredo” sobre Jesus messias, para não alimentar equívocos religiosos e políticos no povo. É a lei do silêncio adorante diante do mistério de Deus, que penetra nossas vidas, e nos doa uma capacitação de ver, de julgar e de escolher, diferente da mentalidade comum. O que nos é doado por graça é inexprimível, fruto de sabedoria divina, que é loucura para o mundo.
Os tempos de Deus não são os tempos dos homens. A inquietação dos homens para esclarecer o que acontece, dominar, possuir, acaba por empurrá-lo a queimar as etapas, a acelerar os tempos. As irrupções de Deus, porém, na vida de Abraão, de Moisés, de Elias, de Jesus, de Maria... surpreendem com suas novidades, mudam os horizontes humanos, abrem gestações que amadurecem segundo tempos e passagens escolhidos pelo próprio Deus, até chegar à plena entrega na liberdade do amor.
Até que não se passa através da morte do “homem velho”, auto-centrado, graças à transformação operada pela páscoa e a ação do Espírito, não conseguimos nos afinar com o coração de Deus, como nos ensinam todos os mestres da vida espiritual. O “homem novo”, capaz de entender as coisas de Deus e de agir com os critérios do Espírito, nasce nas dores do parto da nova criação, que envolve a pessoa e a criação, na mesma dor e na mesma esperança (cf. Rm 8, 22-25).
Cada dia, assistimos a processos arrasadores de “des-figuração” da dignidade das pessoas, visíveis nos rostos assim como nas relações interpessoais, e mesmo da natureza, sob a violência dos homens e das instituições. É a transfiguração da realidade em sentido contrário, dominada pelo pecado, que ao fundo é a busca desenfreada da própria “glória” por parte do homem.
A tradição espiritual, sobretudo das igrejas do oriente e da vida monástica, conhecem o processo de transformação interior da pessoa, que se faz visível na mesma face dos homens e mulheres de Deus. Irradiam serenidade, força, paz e luz, quase um doce sorriso permanente que cura e alivia. Nestas atitudes se esconde a dura ascese de purificação interior e a intimidade constante com Deus, que fazem destes homens e mulheres pessoas profundamente espirituais e humanas. Quem pode esquecer o sorriso luminoso de madre Teresa de Calcutá, brotando das profundas rugas do seu pequeno rosto, familiar com as dores de tantas crianças e marginalizados, e irradiante esperança e cura?
Estas pessoas são o Senhor, encarnado em maneira sempre nova e transfigurado, no meio de nós, e nos indicam o caminho a seguir. Elas se tornaram reintegradas na unidade do espírito e do corpo, nos sentidos e nas relações. São uma celebração vivente da transfiguração e da páscoa, tendo percorrido com humildade e perseverança o caminho purificador da quaresma existencial.
Um antigo mestre de vida espiritual afirma: “Quem ama a Deus no íntimo do coração é por ele conhecido.... Aquele que atinge esta perfeição do amor deseja ardentemente que a luz do conhecimento divino penetre até o mais íntimo do seu ser, a ponto de se esquecer de si mesmo e de se transformar totalmente no amor de Deus” (Diádoco de Foticéa, Capítulos sobre a perfeição espiritual; LH, Lecionário Monástico, 1ª Semana de Quaresma, quarta-feira).
Com o apóstolo, cantemos a nossa esperança: “Nós todos que, com a face descoberta, contemplamos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é Espírito” (2 Cor 3, 18).
Notas:
1 - Trata-se de uma belíssima igreja do século VI construída numa região setentrional da península itálica, uma zona de enclave entre o Ocidente e Oriente. O epíteto “in classe” deriva do fato de, em tempos remotos, o mar chegar até aquela região, oferecendo um porto (in classis) onde as mercadorias eram descarregadas. Nessa igreja nasceu e se formou a vocação monástica de São Romualdo, o pai dos monges Beneditinos Camaldulenses. Para uma visão mais abrangente deste edifício dedicado ao culto, podem-se consultar bancos de imagens disponíveis na internet através de uma ferramenta de busca utilizando os dizeres “Sant’ Apollinare in Classe”.
Fonte: Zenit.
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