segunda-feira, 5 de abril de 2010

Chaves para o conflito entre cristãos e muçulmanos na Nigéria

A Nigéria é um dos países mais populosos da África, composto por uma variedade de grupos étnicos e religiosos artificialmente unidos sobre o poder colonial britânico.
Ainda assim, a coexistência costumava manter-se em paz, ainda que não faltavam tensões. Agora, muita daquela paz desapareceu, vítima de violentos enfrentamentos. Dom Ignatius Kaigama, arcebispo de Jos, pergunta-se o porquê.
Ainda que o conflito tenha sido caracterizado como a erupção violenta das tensões entre muçulmanos e cristãos, este arcebispo de 51 anos suspeita que há outros motivos escondidos.
–Têm-se registrado tensões entre cristãos e muçulmanos no norte da Nigéria e também no centro, onde está Jos. Qual é a raiz do problema?
–Dom Kaigama: Creio que é o sentimento de que uma religião deve ser maior que a outra. Esta é a propaganda tanto do islã como do cristianismo. Cada religião quer controlar, mais ou menos, todo o sistema e, portanto, há essa competição, e quando a sharia, por exemplo, foi introduzida, há pouco, os cristãos sentiram-se ameaçados. Desde a introdução da sharia em sua forma atual, registra-se uma grande tensão, há uma relação agitada, e isso estourou algumas vezes em violência. Há testemunhos do fato de que houve muitas crises religiosas na Nigéria e que a maioria deles aconteceu no norte. Desde a introdução da sharia, estas crises parecem-se repetir uma e outra vez.
–Qual é a preocupação dos cristãos com a introdução da sharia, ou lei islâmica, na Nigéria?
–Dom Kaigama: A sharia que se introduziu há pouco é um tanto diferente do que costumava ser. A sharia tem existido na Nigéria e, ainda assim, cristãos e muçulmanos viviam de forma pacífica e coexistiam bem. Desde a introdução da sharia recente, os cristãos sentiram-se ameaçados, porque os cristãos nestas áreas estão em minoria e perderam muito. Se, por exemplo, seu negócio vende bebidas, a sharia não permite, então se perde o estabelecimento. Inclusive o modo de vestir e a liberdade de culto e religião estão ameaçados, por isso os cristãos têm razão em estar preocupados, e é a razão pela qual alguns abandonaram sua zona de residência e e fecharam seus negócios.
–Creio que no Estado de Zamfara, por exemplo, obrigam-se homens e mulheres a viajar separadamente nos transportes públicos, e a forma de se vestir islâmica. Há verdadeira pressão social para que se aplique aos cristãos a lei islâmica?
–Dom Kaigama: Definitivamente. Isso tem criado graves tensões, porque as pessoas, ao saírem do trabalho, gostariam de relaxar: querem ir ao cinema, tomar uma pequena bebida e lhes é dito que isso não é possível. A vida se torna muito aborrecida e, como digo, em tais circunstâncias, pode estourara facilmente a violência.
–Na parte sul da Nigéria, que é predominantemente cristã, é possível para um muçulmano se converter ao cristianismo. No norte, não é possível. Que ocorre?
–Dom Kaigama: Há jovens que vieram a mim pendido ajuda. São jovens muçulmanos Hausas ou Fulanis que querem ser cristãos. Eles dizem que suas vidas foram ameaçadas. Foram despejados de seus lares. Caso sejam encontrados, serão mortos. Pedem ajuda. Nem sempre é fácil, porque se você aceita estas pessoas, você mesmo corre o risco de ser atacado. Por isso, tentamos separar os aspirantes genuínos – porque alguns podem vir apenas porque querem se infiltrar. Uma vez que estamos seguros de que se trata de um caso genuíno, tentamos ajudar. Em muitos casos, peço a meus catequistas que venham e os animem, e isso tem funcionado.
–Por que os acontecimentos de âmbito internacional têm repercussões tão violentas na Nigéria?
–Dom Kaigama: A ignorância. Todos nos sentimos impactados ao escutar que acontecera uma reação terrivelmente violenta contra as caricaturas da Dinamarca. Pensamos que não tem nada a ver conosco, mas por ignorância a intolerância nos traz isso. De repente estoura a violência religiosa. Está seguro de que isso é a religião? Talvez existam outros motivos, os motivos que querem alcançar seus fins. Algumas vezes há fatores econômicos que criam tensão, como os jovens que estão desempregados e reagem dessa forma ante certas coisas que na realidade não lhes preocupam. Por isso me é difícil crer que a religião possa trazer esta classe de terrível violência. Ademais da ignorância, quem sabe a religião é usada como arma política ou étnica por algumas personalidades. Isso poderia ser a razão.
–Destruíram-se mais de 300 igrejas em quatro anos, se entendi corretamente. Como os católicos podem viver sua fé nesse contexto?
–Dom Kaigama: Há que se viver um dia de cada vez e aprender a sobreviver. Não acredito que todos esses ataques e perseguições nos façam negar Nosso Senhor Jesus Cristo ou negar nossa fé. A vida deve prosseguir. Quando se destrói uma igreja, você recolhe os escombros e segue adiante. Precisamente agora, enquanto estou lhe falando, tenho muitas igrejas na arquidiocese de Jos que foram destruídas. Temos lutando nos últimos cinco anos para reconstruí-las. Podem-se destruir as igrejas, mas não se pode destruir o espírito cristão em nós. Dizemos aos nossos cristãos que se ergam por sua fé. Animamos nossos cristãos a evitar a vingança, a evitar a violência; sempre pregamos a cultura da não violência. Isto é o que Nosso Senhor Jesus nos convida: oferecer a outra face a seguir oferecendo, talvez o estômago, a perna. Seguimos oferecendo, mas isso não quer dizer que os cristãos sejam estúpidos. Sabemos o que fazemos. É pelo bem comum e não podemos responder de outra forma. Se atacamos e matamos tudo acabará ardendo. Por isso, propomos o diálogo como opção viável.
–O senhor mencionou o fato de que está trabalhando para reconstruir as igrejas. Como está a situação junto ao governo na sua região, por exemplo, nesse âmbito?
–Dom Kaigama: Obter as permissões não é um problema em minha arquidiocese porque temos uma forte presença cristã. Mas em lugares como Kano e Sokoto não se consegue com facilidade permissão para construir uma igreja. Podem lhe permitir construir um hospital, uma clínica ou um colégio, porque proporcionam serviços sociais às pessoas. Quando se fala de construir uma igreja, pensam que você está ali para propagar sua fé cristã, e resistem.
–Muitos cristãos, obviamente, por medo deste recente estouro de violência, recolheram seus pertencem e partiram para o sul. Isso é uma ameaça para o cristianismo no norte da Nigéria?
–Dom Kaigama: Sim. Alguns cristãos do sul que vivem e trabalham no norte voltam para seus lares quando estouram estas crises. Mas isso não significa que o cristianismo esteja morto no norte, porque ainda há a população indígena. Por exemplo, em Kano, há o grupo étnico Maguzawa. São Hausas e normalmente todo mundo espera que um Hausa seja muçulmano. Não são. Seguem a religião tradicional. Quando não a seguem, são católicos ou anglicanos. Eles estão ali e não emigram. Sofrem muito por sua identidade e fé cristã. A educação é-lhes negada, assim como os empregos no governo. Trabalham na limpeza ou tarefas similares, nada mais. Isso é o que sofrem por serem cristãos. E a Igreja veio para ajudá-los de forma decisiva, dando força, abrindo escolas primárias, construindo capelas. Está funcionando. Há cinco ou mais pessoas destes grupos étnicos que se fizeram sacerdotes e estão trabalhando muito bem.
–O senhor está escrevendo um livro chamado “O diálogo de vida”, em que expressa sua esperança de que o diálogo de vida seja um instrumento que una cristãos e muçulmanos. Que é “diálogo de vida”?
–Dom Kaigama: Diferentemente da interação teórica e intelectual, proponho um diálogo de vida como entrecruzamento de cristãos e muçulmanos que vivem juntos de forma que atuam reciprocamente no dia-a-dia. Estão juntos em diversos compromissos sociais. Estão juntos, e não falamos só na teoria. O diálogo de vida afeta a a existência do dia-a-dia.
–Funciona?
–Dom Kaigama: Sim. É por isso que preparei este livro. É sobre minha experiência de relação com os muçulmanos. Aí está o emir de Wase que há pouco se tornou meu amigo. É o presidente dos muçulmanos no Estado de Plateaeu. É um emir poderoso e desde que me tornei arcebispo, temos trabalhado juntos.
–O senhor uma passagem favorita da Bíblia (Filipenses 3, 10, “Anseio pelo conhecimento de Cristo e do poder da sua Ressurreição, pela participação em seus sofrimentos, tornando-me semelhante a ele na morte”). Por que esta passagem é tão importante?
–Dom Kaigama: Deveríamos participar nos sofrimentos de Cristo para poder participar em sua ressurreição e esse é meu lema episcopal: Per Crucem ad Dei Gloria - Através da Cruz para a Glória de Deus.
Acredito que depois que se sofre, depois que se é perseguido, depois de enfrentar tantos desafios, pode-se subir até a glória de Deus, e só como Cristo – Ele teve de sofrer, teve de morrer. Teve de sofrer muito por nós e subiu à glória. Creio que não é nada fácil. Minha relação com os muçulmanos não é fácil. Meu trabalho pastoral está cheio de desafios. Quando saio ao campo, vejo que há gente que sofre. Gente faminta, enferma, privada das necessidades básicas. Vejo as pessoas que sofrem injustiça. Quero identificar-me com eles e é como pastor que saio a estar com eles. Bebo de sua água suja. Como sua comida para compartilhar sua agonia e suas dores, e creio que há uma recompensa por isso. Quando sofremos por Cristo, acredito que há uma grande recompensa esperando, e não deveríamos olhar o sofrimento como uma condenação de Deus, mas como um desafio e um caminho para a glória.
* * *
Esta entrevista foi realizada por Mark Riedemann, para “Deus chora na Terra”, um programa semanal produzido por Catholic Radio and Television Network (CRTN), em parceria com a organização católica Ajuda à Igreja que Sofre.

Mais informação em www.aisbrasil.org.br, www.fundacao-ais.pt

Nenhum comentário:

Postar um comentário