Zimbábue, na língua local, significa “casa de pedras”. Hoje, esta casa foi derrubada, afirma o bispo de Chinhoyi.
Dom Dieter Scholz afirma que, em seu país, o desemprego estima-se em 80% e, se as pessoas têm um salário, apenas compram com ele uma barra de sabão ou três sacos pão.
Nesta entrevista concedida ao programa de televisão “Deus chora na Terra”, de Catholic Radio and Television Network (CRTN), em colaboração com Ajuda à Igreja que Sofre, o bispo falou sobre a situação de seu país.
–Como descreveria a situação dos cidadãos do Zimbábue?
–Dom Scholz: Creio que é justo dizer que muitos – talvez a maioria do povo do Zimbábue – perderam a esperança em que as coisas possam mudar. Esperaram a maior parte da última década, dez anos, a que seu sofrimento, sua fome, seu desemprego, sua pobreza, seus sofrimentos de diversas enfermidades, que não se conseguem tratar nos hospitais, a que tudo isso acabe. Houve muitas tentativas de remediar a situação, mas tudo falhou de alguma forma.
–Que histórias pessoais pode nos contar para dar ideia do sofrimento atual?
–Dom Scholz: Durante a crise entre as eleições gerais de março de 2008 e a assim chamada suposta eleição presidencial de junho, nesses três meses, houve uma tentativa de eliminar fisicamente a oposição ao partido no governo, o Movimento para a Mudança Democrática. Para eliminar tal oposição, através de agressões, tortura e assassinatos, em uma de minhas paróquias, em Banket, apenas a 20 quilômetros de Chinhoyi, um jovem que era nosso líder juvenil, Joshua Bakacheza, foi sequestrado em maio. Ele já estava se escondendo. A única coisa que tinha feito, em termos de ligação com a oposição, era ter trabalhado como motorista para o Movimento para a Mudança Democrática.
Foi sequestrado um dia, e para encontrá-lo – porque tinha entrado na clandestinidade – os agentes da Polícia de Segurança do Estado foram visitar seu irmão menor no horário escolar, e lhe disseram: “estamos aqui porque encontramos um doador para oferecer-te uma bolsa que te ajudará na escola até o fim de tua educação secundária”. Como imaginavam, prontamente o irmão menor ligou para o maior, pedindo-lhe que viesse para assinar tal contrato de bolsa.
Quando chegou à escola, foi rapidamente preso. Desapareceu e não foi visto em três semanas. Seu corpo, com partes queimadas e mutiladas, foi encontrado próximo de um lugar chamado Beatrice, ao sul de Harare, a capital, e isso causou um enorme sentimento de cólera, tristeza e desespero em toda diocese, onde era muito conhecido.
Este é só um caso, e posso contar-lhe muitos outros de sacerdotes que foram atacados, cujas casas foram incendiadas, porque se presumia que eram simpatizantes da oposição política.
E não entendemos como as diferenças nas posturas políticas podem conduzir a tais crueldades. É um mistério, e ninguém terá dificuldades em acreditar que não só há mal no mundo, mas que é o maligno quem envia espíritos malvados, como diz Santo Inácio na primeira semana de seus exercícios espirituais, um texto que estou familiarizado.
Inácio fala com imagens e linguagem de sua época. Lúcifer que está sentado na Babilônia em um trono de fogo, reunindo os demônios do mundo e enviando-os para cometer o mal.
Durante aqueles três meses que acabo de mencionar, compreendi as imagens e a linguagem que Santo Inácio usou. Eram mais reais do que eu podia imaginar. Vimos o mal percorrendo todo o país, de norte a sul, de leste a oeste.
–Por que o Zimbábue foi escolhido para esta cruz?
–Dom Scholz: Creio que é uma longa história. Como se sabe, os primeiros colonos chegaram no século XIX e conquistaram a terra com a violência, a avareza e o engano. Tiraram as pessoas da terra. Fizeram-nas trabalhar para eles. É verdade que as infra-estruturas que agora temos são fruto do trabalho das pessoas e do conhecimento dos colonos; no entanto, houve muita crueldade, injustiça, ainda que não tão institucionalizada como na África do Sul; houve também segregação racial e discriminação. Isso levou à guerra civil, ao despertar do Movimento Nacionalista Africano. Atualmente há dois movimentos. Robert Mugabe foi o chefe da União Nacional Africana do Zimbábue.
–Na assim chamada Guerra dos Arbustos, verdade?
–Dom Scholz: Sim. A guerra dos arbustos desde o ponto de vista das guerrilhas que representavam os interesses da população local, mas, no entanto, o exército de Rodesia utilizou tecnologia e métodos modernos de guerra apoiado pela África do Sul e, provavelmente por isso, ao final venceu as guerrilhas, porque, em última instância, era uma guerra civil nas matas.
–A terra do Zimbábue tem estado cheia de violência?
–Dom Scholz: Desde a chegada dos colonos até hoje, nunca houve um período de paz serena e tranquila. Sempre houve violência, nem sempre física, às vezes estrutural, através de leis de discriminação que forçavam à pobreza, que privavam as pessoas de voto, de futuro. Mas creio que com as próximas gerações será muito diferente. Conheço as pessoas. Há um grande futuro para o Zimbábue.
–Como vê seu papel como pastor neste momento e que papel tem a Igreja agora que todas as estruturas se desfazem ao redor da Igreja?
–Dom Scholz: Meu papel primário é apoiar os sacerdotes em sua cada vez mais complicada missão. Passaram por um verdadeiro período de perseguição desde a carta pastoral “Deus escuta o grito do oprimido”, publicada no ano passado. Seguindo a tal carta pastoral, nossos sacerdotes foram perseguidos, sobretudo em nossa província.
–Como?
–Dom Scholz: Ligações anônimas, ameaçadoras, insultos dos principais católicos, importantes mulheres católicas de nossa diocese, chamando o presidente do conselho pastoral para lhe dizer que seus sacerdotes – que é o padre que lhe dá a comunhão quando se aproxima a missa dos domingos –, são uns grosseiros, ladrões e bêbados, e se não pararem de falar do modo em que o fazem, verão o que faremos a eles. Este tipo de ameaça.
Creio que este é um desafio pastoral que ainda precisamos enfrentar quando assentar a poeira. Confrontar nossos fiéis e suas consciências com as exigências da fé. As simples exigências da justiça por um lado e a forma em que suportaram o que ocorreu entre março e junho. Também o modo de falar e atuar enquanto vinham à missa.
Não pudemos fazer isso devido às tensões na comunidade cristã mas também na sociedade em geral e devido à intimidação constante à que nos expuseram.
Por isso, eu diria que minha primeira tarefa foi apoiar os sacerdotes quando tiveram de fugir de suas paróquias, como alguns tiveram de fazer. Demo-lhes as boas-vindas na casa do bispo ou no centro de pastoral, assegurando que estariam seguros.
Um primeiro, fui capaz de enviar para a Inglaterra por um período de descanso e recuperação, e lhe seguiram outros dois, poucas semanas depois.
–É tão esgotador o problema entre seus sacerdotes?
–Dom Scholz: Esgotamento, esgotamento físico, mas também esgotamento emocional e psicológico. É difícil imaginar se não se está em uma sociedade fechada como o Zimbábue, em que prevalece a anarquia, e se alguém o ataca verbal ou fisicamente e você vai à polícia para dar queixa, ou se vou a me queixar à polícia, serei preso por alterar a paz e por atacar outras pessoas.
Por isso diria que estes são os principais papéis do bispo, apoiar os sacerdotes e apoiar os fiéis em minhas viagens pela diocese, que cobre a parte norte e noroeste do Zimbábue.
–Até onde querem chegar os bispos, até onde se pode chegar nesta situação?
–Dom Scholz: Não tenho nenhum problema com isso. Durante a guerra de libertação, estive implicado na Comissão Católica Justiça e Paz junto com o bispo Lamont, que era nosso presidente e outros três. Eu fui preso e expulso do país. Dizíamos a verdade então e sinto que agora temos de dizer a verdade, e isso é o que fizemos em nossa carta pastoral. Outra confirmação pela qual creio que abordamos o tema em sua própria base foi a cólera sem precedentes do governo. Estavam furiosos de verdade. E quando nos encontramos com funcionários do governo, não há oportunidade em que não se refiram à chamada carta pastoral. Eles se referem a ela como “a carta pastoral”; ainda que tenhamos escrito uma ou duas cartas pastorais antes.
–E está por chegar a ressurreição?
–Dom Scholz: Sim, e a verdade se escutou em ambos lados.
–Que ocorre com a comunidade internacional? Abandonou o Zimbábue?
–Dom Scholz: Não. Têm havido palavras e atuações de apoio desde todos os cantos do mundo, emails, cartas, doações, pequenas doações, grandes, precisamente quando tínhamos a crise da qual falava, entre as eleições de fins de março e a saída presidencial de junho.
Temos cinco hospitais em nossa diocese e com o colapso do setor da saúde pública, os que foram feridos pelos agentes do Estado vieram a nossos hospitais para se tratar.
Inicialmente inclusive foram rechaçados durante semanas quando buscavam conseguir ajuda médica, mas quando vieram com feridas enormes em seus corpos – podia-se por o punho nas feridas – nós apenas tínhamos remédios, e essa foi a época em que o padre Halamba veio, de Ajuda à Igreja que Sofre, e enquanto lhe expus a situação, em alguns dias fez a doação mais generosa possível de remédios, o que nos permitiu abastecer os hospitais.
–Não está cansado com o que está acontecendo em seu país?
–Dom Scholz: Obviamente estou cansado, e quando, pela tarde, estou esgotado, vou a minha capela esperar que passe ou até que fique em paz e na oração encontro esse equilíbrio.
Mas como se pode estar em paz quando um seminarista do terceiro ano, que está a ponto de ser ordenado diácono, vem me dizer: “Ontem assassinaram meu pai, de 62 anos, porque suspeitavam que era um membro da oposição, mas não era”. Um vizinho que guardava um antigo ressentimento o denunciou à milícia e ela veio com pedaços de pau, bastões e o espancou até a morte, diante de sua esposa.
Como se pode não cansar? Tentaram chamar por telefone a polícia, que disse que não podia abrir a delegacia. Isso é o que quero dizer quando falo de que a verdade terá que sair. Os que cometem estes atos terão de ser nomeados. Terão de enfrentar suas ações e logo poderemos começar o processo de reconciliação, talvez inclusive de anistia.
Este é o erro, se me permite acrescentar, que cometemos ao terminar a guerra civil, a guerra de libertação. Em um gesto de grande generosidade, e creio que genuíno, Robert Mugabe disse: “Desenharemos aqui uma linha. Não voltaremos ao passado e teremos um novo começo”.
Creio que quando disse isso na véspera da independência, era algo genuíno. Não foi uma trapaça. Conhecia muitos brancos que estavam no caminho para a África do Sul, para emigrar, para fugir pelo que lhes havia dito Ian Smith que lhes faria Robert Mugabe. Conheço uma família que parou à beira da estrada, fez uma oração e, após debater, retornou e seguiu com seus cultivos no país.
Aquilo era muito generoso, mas todos somos seres humanos, e as contas sem ajustar daquela guerra ainda seguem abertas nas comunidades locais.
–Deste modo, não pode haver paz sem justiça?
–Dom Scholz: Não pode haver reconciliação sem a verdade. A verdade tem de vir à tona. Tem de se conhecer. Creio que o perdão se deve pedir para que se possa dar. Em uma comunidade ideal, talvez um poderia dizer: bem, desenhamos uma linha aqui e começamos de novo, mas sendo como somos, sendo quem somos, as feridas do coração curam de forma muito mais lenta que as feridas do corpo. Agora também vejo isso.
–Que apelo faria?
–Dom Scholz: Meu primeiro pedido é que todos sigam rezando pelo Zimbábue, que rezem pela paz, pela valentia dos líderes que perderam as eleições, para que se vão. No interesse do povo e da nação, que outro assuma o poder. As eleições foram uma votação pela mudança. Não foram uma votação de um manifesto elaborado. As pessoas apenas diziam: “estamos cansadas, com fome, estamos sem trabalho, sem escolas, hospitais, queremos mudança”. Se nossos líderes pudessem reconhecer isso e ser o suficientemente generosos para saírem, apesar do medo ao que possam ter de enfrentar, então as orações dos católicos que veem este programa serão escutadas. Seria um milagre, mas um milagre que poderia ocorrer.
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Esta entrevista foi realizada por Mark Riedemann, para “Deus chora na Terra”, um programa semanal produzido por Catholic Radio and Television Network (CRTN), em parceria com a organização católica Ajuda à Igreja que Sofre (www.aisbrasil.org.br, www.fundacao-ais.pt).
Fonte: Zenit.
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