A maior causa das tensões na Nigéria não é a divisão entre cristãos e muçulmanos, mas entre ricos e pobres, afirma o arcebispo de Abuja, capital do país.
Em entrevista ao programa de televisão Deus chora na Terra, da Catholic Radio and Television Network (CRTN) em colaboração com Ajuda à Igreja que Sofre, o arcebispo John Onaiyekan explica que o maior perigo para a paz na Nigéria “é a injustiça social no país”.
Em aproximadamente uma década, 3.000 pessoas foram assassinadas pela violência inter-étnica e inter-religiosa. Qual é a origem desta violência?
Dom Onaiyekan: Essa é a má notícia, a perda de vidas em conflitos que têm conotações religiosas e são interpretados como religiosos. Mas eu acho que nós temos que lembrar que milhares de vidas se perdem no meu país, ano após ano, por causa dessas mortes diárias em hospitais por culpa da má gestão, e também por causa de conflitos em áreas onde não existem cristãos ou muçulmanos. E ninguém fala delas. Só da violência entre muçulmanos e cristãos. Nós estamos falando de uma cultura que desvaloriza a vida humana em geral. E eu digo isso como nigeriano, com toda a responsabilidade e tristeza. Temos que colocar tudo no seu devido contexto. Para falar de 3.000, eles calculam normalmente com base nos que perderam a vida no norte da Nigéria.
Na região de Jos?
Dom Onaiyekan: A região de Jos é só a última, porque tem outras da Nigéria com enfrentamentos: em Kaduna, Bauchi, e, quando fizeram aquelas famosas “caricaturas dinamarquesas”, tivemos distúrbios em Duguri e em toda a região, e, depois, na meseta de Jos.
Jos foi especialmente surpreendente, porque Jos não tem uma grande população muçulmana. Nem é um lugar onde se possa dizer que os cristãos e muçulmanos tenham uma relação tensa. É de maioria cristã e nós ficamos surpresos de que num lugar como aquele ocorra esse tipo de violência. Em segundo lugar, seja em Jos ou em qualquer outro lugar, as pessoas não atacam as outras só por causa da religião.
Mas quando escrevem sobre isso, apresentam justamente assim: violência por motivos religiosos entre muçulmanos e cristãos. Se não é assim, qual é a verdadeira origem?
Dom Onaiyekan: Pode haver uma dimensão religiosa, porque os nigerianos são profundamente religiosos, o que é uma coisa grandiosa. E este é um dos casos em que algo bom pode virar uma coisa ruim. Eles são profundamente comprometidos com a fé, e isso quer dizer que tudo o que eles fazem é com fervor religioso. Se duas pessoas brigam, até no mercado, e um é muçulmano e o outro é cristão, antes de saber qualquer coisa as pessoas vão dizer: “aquele muçulmano e aquele cristão estão brigando”. Não vão dizer: “aqueles dois nigerianos”, como deveriam dizer, e eu acho que é isso o que faz parecer que é uma disputa religiosa.
No caso de Jos, o assunto é bem claro: é entre os que são considerados “indígenas” da meseta e os considerados “colonos”. O problema nem é tanto com os colonos, porque existem colonos e indígenas pela Nigéria toda. O problema na meseta é a situação dos colonos que exigem plenos direitos como indígenas, um ponto em que eu pessoalmente estou de acordo, e que não é válido só para aquela meseta, mas para toda a Nigéria.
Há outros elementos em jogo?
Dom Onaiyekan: Eu quero insistir no seguinte: os nigerianos não são só cristãos ou muçulmanos; os nigerianos são também hausa, ibo e ioruba. Os nigerianos têm também ideologias políticas diferentes. E a maior diferença hoje, e uma das causas da maioria dos problemas, e o maior perigo para a paz na Nigéria, não é essa história dos cristãos e dos muçulmanos; é a injustiça social no país. A grande diferença, o grande abismo entre uns poucos que são muito ricos e a imensa maioria que são pobres numa nação que é muito rica.
Os poucos ricos, a maioria dos quais são também ladrões, bandidos que roubam o nosso dinheiro, gente corrupta, são cristãos e muçulmanos que estão sentados nas mesmas mesas diretivas. Os pobres que estão sofrendo também são cristãos e muçulmanos, e também se dão bem entre si, porque têm os mesmos problemas. Estas são as coisas que deveríamos considerar de modo cuidadoso, e, se você vive na Nigéria, tem que usar essa lente para não se deixar levar por explicações que parecem simples e diretas, mas são simplistas demais.
Então podemos dizer que o sucesso ou o fracasso político na Nigéria se traduz em poder econômico ou na falta dele?
Dom Onaiyekan: Isso. É uma mentalidade de “o ganhador leva tudo”. Se você é do partido do governo, então você consegue todos os contratos, todas as promoções e todos os trabalhos no governo para os filhos. Mas se você é da oposição, aí você não consegue nada. Se, além de pertencer ao partido da oposição, você ainda pertence a uma tribo diferente, porque além da divisão política você acrescente também a étnica, e se você acrescentar também que pertence a outra religião, é fácil alguém dizer que cristãos e muçulmanos se enfrentam... E esta é a imagem que você vê no mundo inteiro sobre a Nigéria.
Jamais eu vi na Nigéria que nós tenhamos brigado porque Jesus Cristo seja ou não seja Deus, que é a maior diferença teológica entre os cristãos e os muçulmanos. Nós nunca brigamos por isso nem nunca nos enfrentamos para discutir se Maomé é um verdadeiro profeta ou não é. Nós lutamos pela terra. Nós discutimos quantos ministros são muçulmanos ou cristãos. Nós discutimos sobre quem é o líder deste ou daquele partido político. Estes é que são os temas em que existe enfrentamento.
Isso levanta a questão: Por que é apresentado como um assunto religioso e não como o que ele realmente é - interesses econômicos ou políticos?
Dom Onaiyekan: É devido à natureza da comunidade nigeriana. Nós facilmente nos identificamos como cristãos ou muçulmanos. Se você estiver na Nigéria num domingo, verá que as igrejas estão cheias. Todo mundo vai à igreja no domingo. Se você é um cristão e estiver sentado em casa em um domingo, te perguntarão: "por que não vai à igreja? O quê acontece? Você tem algum problema?". E se pode dizer o mesmo para um muçulmano. É como se sua identidade se definisse em termos de sua religião. Então, seja lá o que você faça, você é considerado cristão ou muçulmano.
Em segundo lugar, quando duas pessoas são rivais, tentam implantar todos os recursos para se proteger. Assim, se eu estou lutando com um parceiro que é muçulmano e eu estou prestes a perder, direi: "Olha como eles me tratam. Eu sou cristão". Isso me lembra de São Paulo quando ele estava em pé diante do Sinédrio, olhou os fariseus entre os saduceus e disse: "Eu sou fariseu e por isso sofro." Então os fariseus apoiaram. Há algo disso também. Do lado muçulmano, há pessoas que querem atrair a solidariedade dos muçulmanos, não só na Nigéria, mas também no exterior. Vemos que isso acontece em ambos os lados.
Mas a questão é: Quando este tipo de coisa ocorre, não se pensa muito no resultado. Estamos caminhando para resolver nossos problemas de convivência ou estamos nos preparando para a guerra que haverá, finalmente, entre cristãos e muçulmanos?
O senhor mencionou os interesses estrangeiros. Há interesses estrangeiros provocando isso?
Dom Onaiyekan: Há muitos interesses em jogo, creio eu, já que estamos falando de uma base religiosa, obviamente, em ambos os lados, com correntes que têm posições muito fortes contra os outros. Há correntes islâmicas que acreditam que os cristãos são maus crentes. Há muitas pessoas na Nigéria que assistem TV ou ouvem sermões que vêm Iêmen e são emitidos pelos canais islâmicos. Há pequenos grupos que são muito tendenciosos em ambos os lados.
Também há cristãos que dizem coisas horríveis sobre os muçulmanos. Acham que os muçulmanos que vão a Meca adoram um ídolo, uma pedra, e que não há maneira de um muçulmano alcançar o céu, porque Jesus disse que, se não nascer da água e do espírito, não entrarás no Reino de Deus. Quando alguém vai a público dizer isso diretamente aos muçulmanos, está provocando, mas, digo novamente, trata-se de um pequeno grupo. Nossa Igreja não ensina isso. Quando há choques, o resto de nós fica envolvido, o que é um grande problema. A razão final que lhe daria – já que estamos falando em termos de comunicação – é que os jornalistas às vezes são preguiçosos.
Nós conversamos sobre o diálogo nessas situações tão complicadas. O senhor tem esperanças?
Dom Onaiyekan: Eu sou um otimista incurável e sempre olho para o que mais deslumbra e também porque acredito que essa é a atitude cristã. Nós acreditamos em Jesus ressuscitado, e seu espírito nos move. Por isso não temos medo de olhar até mesmo a realidade da corrupção. Amo a Nigéria intensamente. Há tantas pessoas maravilhosas. A grande maioria dos nigerianos, de todas as crenças, são pessoas maravilhosas e quando veem algo de bom, admiram e se apegam a ele. Nosso grande problema é que precisamos de um bom governo, um governo forte, que possa implementar todas estas coisas maravilhosas e não só os recursos naturais, mas, acima de tudo, os recursos humanos da Nigéria. Com a ajuda de Deus, não deveria haver problemas entre cristãos e muçulmanos. De fato, minha opinião é que a Nigéria será um modelo para o mundo de como os cristãos e muçulmanos vivem juntos, porque nossa cultura tem o maior número de cristãos e muçulmanos vivendo juntos em um mesmo país. Em outros países, uma ou outra das religiões é maioria ou minoria. Faça o que fizer, eles são separados. Na Nigéria, somos iguais e nos encontramos face a face e somos cidadãos do mesmo país, às vezes, os membros da mesma família.
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Esta entrevista foi realizada por Marie-Pauline Meyer para "Deus chora na terra", um programa rádio-televisivo semanal produzido por Catholic Radio and Television Network, (CRTN), em colaboração com a organização católica Ajuda à Igreja que Sofre.
Mais informação em www.aisbrasil.org.br, www.fundacao-ais.pt, http://www.wheregodweeps.org/countries/nigeria
Fonte: Zenit.
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