A Igreja na Ucrânia supostamente havia desaparecido. Os comunistas tentaram liquidá-la em 1946, mas os crentes conservaram a fé de forma clandestina, mantendo-a como uma Igreja de catacumbas durante mais de 40 anos.
Lubomyr Husar, o futuro chefe da Igreja na Ucrânia, nasceu em Kiev em 1933, mas em meio ao alvoroço do comunismo, sua família abandonou o país, encontrando refúgio primeiro na Áustria e assentando-se, depois, nos Estados Unidos, em 1949. Moraram nos Estados Unidos durante 20 anos e o jovem Lubomyr seguiu lá sua vocação sacerdotal, tornando-se sacerdote da eparquia ucraniana de Stamford (Connecticut), em 1958.
Ele morou na Itália durante mais de duas décadas e, depois de 46 anos de ausência, voltou à sua nativa Ucrânia.
Hoje, com 77 anos, e agora cardeal (desde 2001), é o arcebispo de Kiev.
Nesta entrevista, o cardeal reflete sobre a mão da Divina Providência em sua Igreja, que “se supunha que estava desaparecida”.
Seus pais devem ter sido um exemplo para o senhor. O senhor sempre teve o desejo e o sentido da vocação?
Cardeal Husar: Eu senti isso muito cedo. Acho que foi antes dos 10 anos, quando tive, de alguma maneira, o desejo de tornar-me sacerdote. Certamente, naquele então, durante a guerra, era muito difícil – só se podia sonhar com isso – mas, quando a guerra terminou e, depois, quando chegamos aos Estados Unidos, em 1949, foi possível tornar realidade aquele sonho e entrei no seminário três semanas depois da nossa chegada aos Estados Unidos.
Numa idade assim, aos 10 anos, houve alguma outra pessoa ou algum acontecimento que despertou esse desejo de ser sacerdote?
Cardeal Husar: Acho que foi o bom exemplo do sacerdote da igreja que minha família costumava frequentar. A igreja estava a cargo dos padres redentoristas e eles trabalhavam com muito zelo, pregavam muito bem, cuidavam dos fiéis que iam à sua igreja. Sendo um menino, fui membro da comunidade dedicada à Mãe Santíssima, na qual os padres redentoristas nos reuniam e nos guiavam. Tenho certeza de que isso, de alguma maneira, teve a ver com a minha vocação.
O senhor agora é responsável pelos católicos gregos, não só na Ucrânia, mas também na diáspora e muitos deles estão nos Estados Unidos. O senhor sente que a Providência o levou aos Estados Unidos de forma que pudesse conhecer sua cultura e sua gente?
Cardeal Husar: Estou pessoalmente convencido de que a história da nossa Igreja nos últimos 130 anos, desde a época em que a primeira onda de imigrantes chegou aos Estados Unidos, nos anos 80 e 90, todo este movimento, que depois se repetiu após a primeira e segunda guerras mundiais, foi, de alguma forma, providencial. Que a nossa Igreja pudesse se estabelecer no Norte e no Sul da América e fosse capaz de sobreviver durante os anos em que a Igreja na pátria era perseguida, nos ajuda muito. Acho que hoje existe uma quarta onda que chega aos Estados Unidos e ao Canadá e encontra um novo lar para eles nas igrejas que existem há um século.
Sinto também que, de alguma maneira, é providencial que possamos servir a comunidade; não só a nossa própria comunidade, ajudando a manter a fé e a tradição, mas que também possamos ser testemunhas para os demais da catolicidade verdadeira da Igreja, da amplidão da Igreja, da sua capacidade de existir em diversas culturas e línguas; e sinto que, de alguma forma, isso também é uma intervenção da Divina Providência.
O senhor voltou à Ucrânia no final do comunismo. Qual foi sua primeira impressão ao voltar ao país?
Cardeal Husar: Visitei a Ucrânia pela primeira vez em 1990 e de forma muito breve, apenas durante 10 dias. Encontrei-me com alguns sacerdotes e leigos. A impressão eu diria que foi de luzes e sombras, porque, por um lado, enfrentei a realidade daquelas pessoas, que haviam passado por um período muito, muito duro e, por outro, percebi que essas pessoas, devido ao que haviam passado, tinham sofrido muito. Estive de forma permanente na Ucrânia durante quase 15 anos e me surpreendem, se não todos os dias, quase todos. Descubro algo novo sobre o que foi aquela realidade e os efeitos e consequências que deixou nos corações das pessoas.
O partido comunista, apoiado pelo estado comunista, tentou, de forma muito assídua e de maneira muito refinada, transformar as pessoas, fazer que esquecessem que são criaturas de Deus e convencê-las verdadeiramente de que são criaturas do Estado, que são completamente dependentes do Estado. Em outras palavras, tentar que assumissem uma natureza e uma moral diferentes. Isso ainda está presente em nós, ainda que, graças a Deus, as pessoas mantenham sua fé e vão à igreja. Mas viver uma vida cristã diária não é fácil para eles, porque foram educados de forma diferente, contrário aos princípios da moral cristã.
Qual seria a cicatriz mais profunda e persistente que o comunismo deixou nos corações e no espírito das pessoas?
Cardeal Husar: Não sei se poderia identificar uma em particular, mas, em geral, é a falta de confiança nas pessoas, nos vizinhos e inclusive nos membros da própria família, porque todo o sistema se apoiava no medo e o medo consistia em não confiar em ninguém.
O senhor disse, certa vez: “O problema é que o Leste – isto é, a tradição bizantina – não conhece o Ocidente, a Igreja latina, e o Ocidente não conhece o Oriente”. O que o senhor quis dizer com isso?
Cardeal Husar: Eu quis dizer isso quase literalmente. Neste sentido, a Europa Ocidental, isto é, a cultura latina, e a Europa Oriental, que basicamente é de cultura bizantina, não se conhecem simplesmente por circunstâncias históricas; não se deu o intercâmbio suficiente.
Pode haver duas razões para isso. Uma pode ser uma razão externa, a situação política, a divisão política entre Europa Ocidental e Oriental, que foi muito óbvia durante a Guerra Fria, a Cortina de Ferro. A mentalidade de uma “Cortina de Ferro” esteve presente durante décadas, talvez inclusive séculos. O segundo aspecto é que a Europa Ocidental, especialmente a cultura latina, foi também uma cultura católica, enquanto na Europa Oriental, devido a circunstâncias que estiveram presentes durante séculos, a cultura bizantina se identificou primariamente com as tradições ortodoxas. Falo aqui dos ortodoxos em sentido confessional, o que impediu um intercâmbio fácil entre estas duas culturas que, hoje, por conseguinte, conhecemos como Oriente e Ocidente.
O Papa João Paulo II falou de uma Europa com dois pulmões: o bizantino (ou ortodoxo) e o católico. Que dons a Igreja latina pode oferecer à bizantina e vice-versa?
Cardeal Husar: É necessário fazer aqui um pequeno esclarecimento, porque o aspecto oriental e ocidental – ou ambos os pulmões, se você preferir – não deveriam se identificar totalmente com os católicos e os ortodoxos. A maioria das pessoas do leste é ortodoxa e a maioria das do Ocidente é católica; no entanto, há católicos nas tradições orientais; então, não devemos fazer uma identificação dessa maneira exclusiva.
Mas o Santo Padre falava de um intercâmbio de dons, falando espiritualmente. Acho que há certos aspectos no Ocidente e no Oriente que, se ambas as partes conhecessem, enriqueceriam o Oriente com o Ocidente e vice-versa. Eu não saberia identificá-los de forma precisa, mas, em geral, um deles é a fé. E penso que deveríamos ser muito conscientes do fato de que, ainda que tenhamos dois pulmões, sempre há um coração atrás deles, e este único coração é Jesus Cristo, que é reconhecido por culturas diferentes de maneiras diferentes, mas que essencialmente é o mesmo Jesus Cristo no Ocidente e no Oriente. No entanto, há certos acentos e creio que estes deveriam ser estudados, deveriam ser a expressão desta partilha de dons.
O senhor conheceu o Pe. Werenfried, o fundador de Ajuda à Igreja que Sofre. Poderia me dizer qual foi a importância de Ajuda à Igreja que Sofre na história da Igreja Católica grega e qual é sua importância hoje?
Cardeal Husar: Nas décadas de 60, 70 e 80, o Pe. Werenfried, com Ajuda à Igreja que Sofre, a organização que ele fundou, amava nossa Igreja e ajudou nossa Igreja quando não era popular fazê-lo. Supunha-se que havíamos desaparecido, que haviam nos liquidado. Não deveríamos ser mencionados oficialmente, mas, naquele momento, o Pe. Werenfried estava disposto a ajudar em tudo que pudesse, naqueles dias de perseguição. Por isso, penso não somente na ajuda material oferecida, mas sobretudo na ajuda moral que ele nos deu: sua fé na nossa Igreja, em sua existência, em seu eventual renascimento. Acho que isso foi, para nós, de uma importância capital.
Hoje, certamente, a situação é diferente. Hoje, Ajuda à Igreja que Sofre nos apoia, por exemplo, ainda muito mais com certos projetos. Um dos maiores projetos é a Universidade Católica Ucraniana, a única universidade católica na antiga União Soviética. Quando o Santo Padre João Paulo II veio à Ucrânia, em 2001, passou pelo lugar onde estavam o seminário e a faculdade de teologia e onde estavam presentes os representantes da universidade. Entre eles, estava o Pe. Werenfried; o Santo Padre lhe agradeceu expressamente pelo que havia feito por nós. Acho que, neste sentido, nas novas condições de liberdade e desenvolvimento da nossa Igreja, o trabalho do Pe. Werenfried ainda continua.
Fonte: Zenit.
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