O bullying, forma de violência cada vez mais presente em nossa sociedade, é explorado nesta entrevista concedida a ZENIT por Luciene Regina Paulino Tognetta, doutora em Psicologia Escolar pela USP e coordenadora da Linha de Pesquisa “Virtudes e Afetividade” pelo GEPEM – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral – da Unesp/Unicamp.
A segunda parte desta entrevista será publicada amanhã.
O que é o bullying? Em que contextos ele se apresenta de maneira mais explícita?
Dra. Luciene R. P. Togneta: O bullying é diferente de uma simples brincadeira entre alunos, pois o que o caracteriza é a intencionalidade do autor em causar um sofrimento à vítima. As agressões se repetem sempre com o mesmo alvo, acontecem por um longo período de tempo e há um desequilíbrio de poder, tornando possível a intimidação da vítima. Portanto, há uma violência sentida por quem é vitimizado e, sobretudo, essa violência acontece cotidianamente fazendo a vida dessa criança ou adolescente parecer um inferno a seus olhos. O que torna o bullying algo tão terrível é o fato de ser uma forma de violência repetida e entre pares, ou seja, entre sujeitos que estão em pesos de autoridade iguais. E é na escola que essa relação entre pares é intensificada.
O bullying é um fenômeno isolado ou talvez mais um dos “sintomas” do mundo pós-moderno? A que se deve esse conjunto - sempre crescente - de fenômenos relacionados à violência em nossa sociedade?
Dra. Luciene R. P. Togneta: O bullying é uma forma de violência não necessariamente dessa geração, já que sempre existiu. Contudo, é verdade que, em um momento pós-moderno, em que os tempos são “líquidos”, como diria Zygmunt Bauman, são acentuadas as necessidades de sermos vistos pelos outros como o “garanhão”, como o “jovem”, como o “famoso”, já que tal liquidez dos tempos parece assegurar a necessidade, no presente, da força física, da fama rápida.
Qual é a situação do bullying no Brasil hoje? Estão sendo realizadas pesquisas nesta área? Você poderia nos contar um pouco sobre os resultados mais significativos?
Dra. Luciene R. P. Togneta: Sim, nós fazemos parte de um grupo de estudo e pesquisas, o GEPEM, da Unicamp/Unesp, que estuda e pesquisa temas relacionados à violência nas escolas e à agressividade do ponto de vista da Psicologia Moral. Existe também um curso de pós-graduação da UNIFRAN, chamado “As relações interpessoais na escola e a construção da autonomia moral”, que trabalha com seus alunos, entre outros temas, a violência, o bullying, como formar personalidades éticas etc.
Do ponto de vista da Psicologia Moral, nossos resultados têm apontado para o fato de que o bullyingé um problema moral, já que se remete às relações entre as pessoas e atinge aquilo a que mais se busca – sua dignidade diante de si e dos outros.
E do ponto de vista da educação, que dados chamam mais a atenção?
Dra. Luciene R. P. Togneta: Numa investigação com 150 adolescentes do nono ano de Ensino Fundamental II e primeiro ano do Ensino Médio de escolas públicas da região metropolitana de Campinas (Tognetta et all), encontramos números que assim descrevem essa forma de violência entre pares: 16% de nossa amostra foi considerada entre autores convictos, cujas ações de bullying são reveladas na frequência contínua de seus ataques; 29,3% são aqueles autores que eventualmente se colocam, muitas vezes como forma de proteção e revanche, como autores esporádicos de uma forma de violência que se pareceria com aquelas consideradas bullying. Quando questionamos sobre a possibilidade de já terem sido ou serem alvos de bullying, 60% dos alunos afirmaram já terem passado por processos de vitimização. Finalmente, ao questionarmos sobre o fato de saberem e terem visto quaisquer dessas formas de violência entre os colegas, 92% nos disseram já terem assistido a alguma situação de bullying na escola.
Vejamos: quase que a totalidade dos alunos já testemunhou cenas desse tipo de violência na escola; já foram, portanto, “público”. É ele, o público, quem dá a atenção e, assim, permite a promoção do autor. Bullying é um fenômeno escondido aos olhos dos professores, os quais estão mais atentos a situações que os afetam diretamente, mas não é escondido aos olhos dos alunos. O autor fará os colegas - ou até a classe inteira - saber que chamou um colega de um apelido que ele não gosta, porque é essa a maior recompensa de um autor de bullying: ver a dor do outro com seu sucesso diante dos outros. Quanto mais souberem daquilo que ele é capaz de provocar em alguém, mais satisfeito ele se sente.
O autor dessa humilhação pode ser também um professor?
Dra. Luciene R. P. Togneta: Em 2004 e 2005, conduzimos investigações nas quais perguntamos a cerca de 800 crianças e adolescentes de escolas públicas e particulares da região de Campinas: “Você já foi humilhado, diminuído, desprezado ou caçoado por algum de seus professores?”. Para nossa surpresa, o grande problema que encontramos foi, além do bullying, o fato de que crianças e adolescentes indicavam terem sido humilhados, desprezados, diminuídos pelos próprios professores. Numa das amostras, do 4º ano do Ensino Fundamental ao 2º ano do Ensino Médio, encontramos um número razoável de respostas que indicaram já terem sido menosprezados, ameaçados, zombados por aquele que chamamos de “autoridade” na escola. Por certo, tais ações são veladas e muitas vezes até não entendidas como formas de humilhação por aqueles que a recebem. Foi interessante notar que há um aumento nas respostas que consideram os menosprezos por parte da autoridade como natural entre os alunos: quanto menores, mais heterônomos, a ponto de validar muitas vezes as formas autoritárias pelas quais são tratados.
Mas, quando se trata de maus-tratos advindos de uma autoridade, de um professor, estamos também falando de bullying?
Dra. Luciene R. P. Togneta: Não exatamente, mas as formas de atuação de um professor também podem levar crianças e adolescentes a serem alvos e autores de bullying, ainda que indiretamente. Isso porque, imaginemos a seguinte situação: em determinada escola conhecida por nós e em que conduzimos as pesquisas de 2004 e 2005 na região de Campinas, os pais de dez principais alunos que eram considerados “terríveis” pela escola são convocados para uma reunião em que os filhos estão presentes. Coletivamente, a professora vai apontando os defeitos de cada um desses alunos na frente de todos. Seus pais, sentindo-se ridicularizados, culpados... É dessa forma velada, não intencional, que também a escola expõe suas violências: expõe publicamente o que deveria ser particular e permite que aqueles que já pouco atribuem a si um valor, o façam menos ainda.
Infelizmente, um dos grandes equívocos da escola é que trabalhamos o que é público como particular e o que é particular como público: quando temos uma “briga de galo” – aqueles momentos em que há espectadores que se rejubilam com a briga de outros dois –, como resolvemos? Encaminhamos os “brigões” para a direção e pedimos ao grupo que se aglomera que se disperse. O problema era público e não particular. Todos estavam, de alguma forma, envolvidos, ainda que pela ausência de indignação frente a essa situação de injustiça. Todos deveriam ser questionados: e se fosse com você? O que vocês poderiam ter feito para impedir que essa briga acontecesse? Tudo isso para que aqueles que são indiferentes se sintam implicados a tomar uma posição, para que se indignem com as injustiças na escola.
É comum que uma criança ou adolescente não se manifeste ao presenciar situações como esta?
Dra. Luciene R. P. Togneta: Há, de fato, uma explicação para que crianças e adolescentes cada vez mais se distanciem de pensar no coletivo da escola, como vimos numa investigação realizada com outros 150 estudantes de escolas públicas e particulares do Estado de São Paulo, em 2009. Quando questionamos esses adolescentes do nono ano sobre as ações que uma pessoa pode ter e que lhes cause indignação (ou raiva), 35,33% desses jovens pensam numa espécie justiça apenas autorreferenciada, sem se implicar com os outros, enquanto que somente 24% deles são capazes de indignar-se por qualquer pessoa que sofra a falta de um conteúdo moral, como a justiça, a honestidade, o respeito, entre outros (Tognetta, Vinha 2009).
Como evitar essas humilhações na escola, tanto entre colegas como entre professores e alunos?
Dra. Luciene R. P. Togneta: Quando até a autoridade é citada pelos alunos como agindo com humilhações e intimidações, temos de ter um olhar mais amplo para os problemas da escola. Háuma questão muito maior, quanto ao tipo de ambiente sócio-moral que é constituído nas relações entre os alunos e seus professores. Como pesquisadora do desenvolvimento moral, acredito queuma intervenção de qualidade ao problema da violência chamada bullying começa impreterivelmente pelo diagnóstico do ambiente sócio-moral constituído por aqueles que dele participam. Na verdade, é a qualidade do ambiente sócio-moral uma das questões mais necessárias para se levar em conta num processo de implantação de uma proposta anti-bullying.
Fonte: Zenit.
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