A Nicarágua é um país que foi devastado pela guerra civil, a ditadura e os desastres naturais. Hoje, é uma das nações mais pobres do mundo ocidental.
O bispo capuchinho David Zywiec é o bispo auxiliar do vicariato de Bluefields, que abarca quase toda a metade leste do país, incluindo o que se conhece como a Costa de los Mosquitos.
O prelado de 62 anos nasceu no leste de Chicago (Indiana) e falou recentemente sobre a vida da Igreja na Nicarágua no programa de televisão “Deus chora na Terra”, de Catholic Radio and Television Network (CRTN) em cooperação com Ajuda à Igreja que Sofre.
A transcrição da entrevista se publicará em duas partes.
–Pode-nos dizer como um polonês-norte-americano foi parar em Bluefields, Nicarágua?
–Dom Zywiec: Meus avós vieram da Polônia há cerca de 100 anos. Eu queria ser sacerdote e me senti atraído pelos capuchinhos. Pareciam ser um grupo muito feliz. Fui ao seminário e escutei relatos sobre as missões na Nicarágua, e me apresentei como missionário. Meu superior responder: “Precisamos de você ali”. Fui ordenado em junho de 1974 e em janeiro de 1975 estava na Nicarágua.
–Qual foi sua primeira impressão ao chegar?
–Dom Zywiec: Ao chegar fiquei um pouco surpreso. Vim com companheiros de estudo. Chegamos conduzindo um jeep que tinha sido doação. Pensei que nos dariam uma espécie de boas-vindas de heróis.
Mas o certo é que uma semana antes de chegarmos, tinha acontecido um sequestro e o presidente impôs a lei marcial e o toque de recolher no país. Não sabíamos. Assim, cruzamos a fronteira às nove da noite. Cruzamos a fronteira um pouco antes de que fechasse.
Os demais capuchinhos nos disseram: “O quê!? Cruzaram a esta hora? Não sabem que há toque de recolher? Algum soldado meio louco podia ter atirado e deixado vocês morrerem à beira da estrada”.
Assim nos demos conta daquela violenta realidade, e aquela foi nossa primeira impressão.
–Foi ameaçado ou se sentiu ameaçado na Nicarágua?
–Dom Zywiec: Uma vez, quando estava trabalhando na selva. Quando cheguei, enviaram os missionários mais velhos para as cidades e o mais novos para a selva. Estavam ali os sandinistas, organização que se rebelava contra o governo; ocultavam-se ali, na selva, e ouvi que ali tinha bombardeios e senti um pouco de medo.
Eu me dizia, “minha mãe e meu pai pagam impostos para ajudar o governo dos Estados Unidos, e o governo dos Estados Unidos ajuda o governo nicaraguense, e eles lançam bombas nesta área, contra a guerrilha”.
Nunca vi nenhuma destas bombas, mas isso me assustava um pouco. Mas Deus é bom, e eu estou ainda aqui.
–Que foi o mais difícil que teve de superar ou adaptar-se em sua nova vida na Nicarágua?
–Dom Zywiec: Cheguei em 1975, depois do Concílio Vaticano II. Quando passei pelo seminário – estudando teologia – senti-me muito bem, porque tínhamos uma nova teologia, algo sobre assessoria pastoral. Sentia-me atualizado em comparação com aqueles velhos missionários.
Mas logo o exército do governo veio levar algumas pessoas presas e as torturou. Algumas “desapareceram”, ou soubemos mais tarde que tinham sido assassinadas. Durante um período de dois anos, descobrimos que tinham desaparecido 300 pessoas devido ao governo. Que se faz numa situação dessas? Ninguém nos tinha preparado para aquilo.
–Nunca pensou que enfrentaria algo assim?
–Dom Zywiec: Não, nunca falamos sobre isso nas aulas de teologia. Falávamos sobre assessoria pastoral, apostolados de jovens, coisas assim. A única coisa que podia fazer era recolher informação e passar ao bispo.
–No Vicariato de Bluefields está o que se chama a “Costa de los Misquitos”. De onde vem esse nome?
–Dom Zywiec: A parte oriental da Nicarágua, que está no Vicariato de Bluefields, nunca foi conquistada pelos espanhóis, e assim os índios “misquitos”, que viviam ali, foram autônomos.
E também foram capazes, pode-se dizer, de ter um império que ia desde a costa caribenha do Panamá, através da Costa Rica e ao longo da Nicarágua, até Honduras. Contavam com um poderoso respaldo então, até o século XVIII.
–O Vicariato Apostólico de Bluefields é uma área de 22.825 milhas quadradas. É imenso. Que o apraz fazer em uma típica visita pastoral ou viagem aos povoados?
–Dom Zywiec: Normalmente, o que digo às pessoas é que quero quatro coisas: quero tempo para escutar confissões. Celebro a missa e o crismo ou outros sacramentos que se solicitam, como um batismo ou casamento. Sempre procuro me encontrar com os responsáveis da Igreja. Isso me dá mais possibilidades para dialogar.
–O Vicariato de Bluefields é quase a metade de toda Nicarágua. Vocês são 25 sacerdotes. Não se sentem um pouco atordoados?
–Dom Zywiec: Sim, esse é um problema. Temos cerca de 1.000 capelas e 14 paróquias. Uma pequena paróquia teria um sacerdote com cerca de 30 capelas a seu cuidado. Há um sacerdote do norte de Milwaukee, tem 79 anos e visita mais de 100 capelas.
Cada domingo, nas capelas, tem-se a celebração da Palavra. Os que dirigem estas celebrações são chamados “Delegados da Palavra”. Normalmente, temos dois deles em cada capela, para que no caso de que um fique doente ou não possa fazer, sempre tenhamos alguém.
Temos um catequista para o batismo, um catequista para a primeira comunhão e a confissão, catequista para a confirmação, e catequista para o matrimônio. Temos cursos de preparação normalmente uma vez ao ano para estes diversos catequistas. Algumas paróquias há cursos para músicos. E também há movimentos – os chamados movimentos de retiro – e que são uma forma de ajudar a crescer na fé, preparando líderes. Assim, dependemos muito dos leigos.
–Quantos missionários são? Há vocações?
–Dom Zywiec: Os sacerdotes com que podemos contar seriam os sacerdotes que viriam do Vicariato de Bluefields; há missionários e há gente que ajuda, mas com quem podemos contar mais é com nossos sacerdotes diocesanos nativos, e vemos que muitas de nossas vocações vêm de famílias que são líderes da comunidade.
Por exemplo, onde há um diácono casado, ou um delegado da Palavra, há esse compromisso cristão e esse terreno fértil para as vocações, não só ao sacerdócio, mas também à vida religiosa. Por exemplo, em um povoado de cerca de 10.000 habitantes, nos últimos 20 anos, 15 jovens mulheres entraram no convento. Creio que é algo bonito ver coisas como esta.
–Que expressões populares de fé ou devoções há no Vicariato?
–Dom Zywiec: Temos muitas procissões. Em minha experiência nos Estados Unidos, as procissões se realizam normalmente dentro, mas na Nicarágua há um clima mais cálido e as pessoas costumam ter as procissões fora, como na Semana Santa.
Na Semana Santa, em alguns povoados, há procissões da Via Crucis. Para a Vigília da Páscoa, há a bênção do círio pascal no exterior e logo a procissão até a igreja.
Para nossas festas patronais temos uma procissão com a estátua do santo patrono que percorre a cidade, cantando, rezando o rosário. Isso é normal, parte normal da vida da Igreja. Só rezamos para que não chova muito.
–Além do tamanho do território, o que assinalaria como o maior desafio ao evangelizar o povo “misquito”?
–Dom Zywiec: Ainda que o território seja grande, não se trata talvez de um problema de tamanho, mas de transporte e comunicação. Creio que na região inteira temos cerca de 100 quilômetros de estradas asfaltadas e o restante são estradas de terra. Chove muito.
Outra coisa é que das 1.000 capelas, 100 são de língua misquita. O restante de língua espanhola. São principalmente granjeiros – granjeiros de subsistência – implicados nos trabalhos diários do campo ou na criação de gado.
Talvez uma de nossas maiores preocupações é que as pessoas não só sejam capazes de receber os sacramentos – serem batizadas – mas que também aprendam sobre sua fé e o que significa em suas vidas diárias viver uma evangelização mais profunda. Creio que a promoção vocacional também é algo importante para nós, para que possamos ter sacerdotes no futuro.
E a promoção humana também é importante, na forma de escolas, de programas de saúde, para que as pessoas não só escutem a Palavra de Deus, mas que sejam capazes de viver uma vida humana e sejam capazes de se implicar na vida nacional, e não sejam, por assim dizer, esquecidas – que sejam capaz de participar e participar de forma consciente.
* * *
Esta entrevista foi realizada por Mark Riedemann, para “Deus chora na Terra”, um programa semanal produzido por Catholic Radio and Television Network (CRTN), em parceria com a organização católica Ajuda à Igreja que Sofre.
O bispo capuchinho David Zywiec é o bispo auxiliar do vicariato de Bluefields, que abarca quase toda a metade leste do país, incluindo o que se conhece como a Costa de los Mosquitos.
O prelado de 62 anos nasceu no leste de Chicago (Indiana) e falou recentemente sobre a vida da Igreja na Nicarágua no programa de televisão “Deus chora na Terra”, de Catholic Radio and Television Network (CRTN) em cooperação com Ajuda à Igreja que Sofre.
A transcrição da entrevista se publicará em duas partes.
–Pode-nos dizer como um polonês-norte-americano foi parar em Bluefields, Nicarágua?
–Dom Zywiec: Meus avós vieram da Polônia há cerca de 100 anos. Eu queria ser sacerdote e me senti atraído pelos capuchinhos. Pareciam ser um grupo muito feliz. Fui ao seminário e escutei relatos sobre as missões na Nicarágua, e me apresentei como missionário. Meu superior responder: “Precisamos de você ali”. Fui ordenado em junho de 1974 e em janeiro de 1975 estava na Nicarágua.
–Qual foi sua primeira impressão ao chegar?
–Dom Zywiec: Ao chegar fiquei um pouco surpreso. Vim com companheiros de estudo. Chegamos conduzindo um jeep que tinha sido doação. Pensei que nos dariam uma espécie de boas-vindas de heróis.
Mas o certo é que uma semana antes de chegarmos, tinha acontecido um sequestro e o presidente impôs a lei marcial e o toque de recolher no país. Não sabíamos. Assim, cruzamos a fronteira às nove da noite. Cruzamos a fronteira um pouco antes de que fechasse.
Os demais capuchinhos nos disseram: “O quê!? Cruzaram a esta hora? Não sabem que há toque de recolher? Algum soldado meio louco podia ter atirado e deixado vocês morrerem à beira da estrada”.
Assim nos demos conta daquela violenta realidade, e aquela foi nossa primeira impressão.
–Foi ameaçado ou se sentiu ameaçado na Nicarágua?
–Dom Zywiec: Uma vez, quando estava trabalhando na selva. Quando cheguei, enviaram os missionários mais velhos para as cidades e o mais novos para a selva. Estavam ali os sandinistas, organização que se rebelava contra o governo; ocultavam-se ali, na selva, e ouvi que ali tinha bombardeios e senti um pouco de medo.
Eu me dizia, “minha mãe e meu pai pagam impostos para ajudar o governo dos Estados Unidos, e o governo dos Estados Unidos ajuda o governo nicaraguense, e eles lançam bombas nesta área, contra a guerrilha”.
Nunca vi nenhuma destas bombas, mas isso me assustava um pouco. Mas Deus é bom, e eu estou ainda aqui.
–Que foi o mais difícil que teve de superar ou adaptar-se em sua nova vida na Nicarágua?
–Dom Zywiec: Cheguei em 1975, depois do Concílio Vaticano II. Quando passei pelo seminário – estudando teologia – senti-me muito bem, porque tínhamos uma nova teologia, algo sobre assessoria pastoral. Sentia-me atualizado em comparação com aqueles velhos missionários.
Mas logo o exército do governo veio levar algumas pessoas presas e as torturou. Algumas “desapareceram”, ou soubemos mais tarde que tinham sido assassinadas. Durante um período de dois anos, descobrimos que tinham desaparecido 300 pessoas devido ao governo. Que se faz numa situação dessas? Ninguém nos tinha preparado para aquilo.
–Nunca pensou que enfrentaria algo assim?
–Dom Zywiec: Não, nunca falamos sobre isso nas aulas de teologia. Falávamos sobre assessoria pastoral, apostolados de jovens, coisas assim. A única coisa que podia fazer era recolher informação e passar ao bispo.
–No Vicariato de Bluefields está o que se chama a “Costa de los Misquitos”. De onde vem esse nome?
–Dom Zywiec: A parte oriental da Nicarágua, que está no Vicariato de Bluefields, nunca foi conquistada pelos espanhóis, e assim os índios “misquitos”, que viviam ali, foram autônomos.
E também foram capazes, pode-se dizer, de ter um império que ia desde a costa caribenha do Panamá, através da Costa Rica e ao longo da Nicarágua, até Honduras. Contavam com um poderoso respaldo então, até o século XVIII.
–O Vicariato Apostólico de Bluefields é uma área de 22.825 milhas quadradas. É imenso. Que o apraz fazer em uma típica visita pastoral ou viagem aos povoados?
–Dom Zywiec: Normalmente, o que digo às pessoas é que quero quatro coisas: quero tempo para escutar confissões. Celebro a missa e o crismo ou outros sacramentos que se solicitam, como um batismo ou casamento. Sempre procuro me encontrar com os responsáveis da Igreja. Isso me dá mais possibilidades para dialogar.
–O Vicariato de Bluefields é quase a metade de toda Nicarágua. Vocês são 25 sacerdotes. Não se sentem um pouco atordoados?
–Dom Zywiec: Sim, esse é um problema. Temos cerca de 1.000 capelas e 14 paróquias. Uma pequena paróquia teria um sacerdote com cerca de 30 capelas a seu cuidado. Há um sacerdote do norte de Milwaukee, tem 79 anos e visita mais de 100 capelas.
Cada domingo, nas capelas, tem-se a celebração da Palavra. Os que dirigem estas celebrações são chamados “Delegados da Palavra”. Normalmente, temos dois deles em cada capela, para que no caso de que um fique doente ou não possa fazer, sempre tenhamos alguém.
Temos um catequista para o batismo, um catequista para a primeira comunhão e a confissão, catequista para a confirmação, e catequista para o matrimônio. Temos cursos de preparação normalmente uma vez ao ano para estes diversos catequistas. Algumas paróquias há cursos para músicos. E também há movimentos – os chamados movimentos de retiro – e que são uma forma de ajudar a crescer na fé, preparando líderes. Assim, dependemos muito dos leigos.
–Quantos missionários são? Há vocações?
–Dom Zywiec: Os sacerdotes com que podemos contar seriam os sacerdotes que viriam do Vicariato de Bluefields; há missionários e há gente que ajuda, mas com quem podemos contar mais é com nossos sacerdotes diocesanos nativos, e vemos que muitas de nossas vocações vêm de famílias que são líderes da comunidade.
Por exemplo, onde há um diácono casado, ou um delegado da Palavra, há esse compromisso cristão e esse terreno fértil para as vocações, não só ao sacerdócio, mas também à vida religiosa. Por exemplo, em um povoado de cerca de 10.000 habitantes, nos últimos 20 anos, 15 jovens mulheres entraram no convento. Creio que é algo bonito ver coisas como esta.
–Que expressões populares de fé ou devoções há no Vicariato?
–Dom Zywiec: Temos muitas procissões. Em minha experiência nos Estados Unidos, as procissões se realizam normalmente dentro, mas na Nicarágua há um clima mais cálido e as pessoas costumam ter as procissões fora, como na Semana Santa.
Na Semana Santa, em alguns povoados, há procissões da Via Crucis. Para a Vigília da Páscoa, há a bênção do círio pascal no exterior e logo a procissão até a igreja.
Para nossas festas patronais temos uma procissão com a estátua do santo patrono que percorre a cidade, cantando, rezando o rosário. Isso é normal, parte normal da vida da Igreja. Só rezamos para que não chova muito.
–Além do tamanho do território, o que assinalaria como o maior desafio ao evangelizar o povo “misquito”?
–Dom Zywiec: Ainda que o território seja grande, não se trata talvez de um problema de tamanho, mas de transporte e comunicação. Creio que na região inteira temos cerca de 100 quilômetros de estradas asfaltadas e o restante são estradas de terra. Chove muito.
Outra coisa é que das 1.000 capelas, 100 são de língua misquita. O restante de língua espanhola. São principalmente granjeiros – granjeiros de subsistência – implicados nos trabalhos diários do campo ou na criação de gado.
Talvez uma de nossas maiores preocupações é que as pessoas não só sejam capazes de receber os sacramentos – serem batizadas – mas que também aprendam sobre sua fé e o que significa em suas vidas diárias viver uma evangelização mais profunda. Creio que a promoção vocacional também é algo importante para nós, para que possamos ter sacerdotes no futuro.
E a promoção humana também é importante, na forma de escolas, de programas de saúde, para que as pessoas não só escutem a Palavra de Deus, mas que sejam capazes de viver uma vida humana e sejam capazes de se implicar na vida nacional, e não sejam, por assim dizer, esquecidas – que sejam capaz de participar e participar de forma consciente.
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Esta entrevista foi realizada por Mark Riedemann, para “Deus chora na Terra”, um programa semanal produzido por Catholic Radio and Television Network (CRTN), em parceria com a organização católica Ajuda à Igreja que Sofre.
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