Todos os anos, ao celebrarmos o Natal de Jesus, nos encontramos com figuras e fatos que evocam a memória desse Natal de há dois mil anos. Vivemos de memórias e somos uma memória viva. Não há história sem memória nem memória sem história. Ao lermos o Evangelho de S. Mateus, nos dois primeiros capítulos, cheios de encanto e significado, passam por nós os reis magos, a estrela, o encontro dos magos com Herodes, a adoração do Menino, a fuga para o Egito, o massacre dos inocentes, o regresso do Egito e a vinda para Nazaré, dois anos e tal depois de se refugiarem no Egito. Porém, ao lermos o Evangelho de S. Lucas, também nos dois primeiros capítulos, deparamos com figuras e facos completamente distintos dos de S. Mateus: o anúncio do nascimento de S. João Batista a seu pai Zacarias, o anúncio do nascimento e Jesus a sua mãe, através do arcanjo S. Gabriel, a visita de Maria a Santa Isabel, o nascimento e circuncisão de Jesus no Templo de Jerusalém, juntamente com Simeão e Ana, o regresso da Sagrada Família a Nazaré, apenas uns quinze dias depois do nascimento, e, finalmente, o encontro de Jesus no Templo.
A apresentação destas figuras e fatos tem um objetivo: fazer com que o leitor perceba que as figuras e fatos narrados em S. Mateus não são os mesmos que em S. Lucas. De comum, os dois evangelistas só têm a conceição virginal de Jesus e o nascimento em Belém. Não seria mais normal que ambos apresentassem as mesmas figuras e fatos? Não podemos, de modo algum, estabelecer uma concordância entre os dois evangelistas, pois o concordismo bíblico é mau conselheiro. Assim sendo, temos de concluir que o evangelista S. Mateus não conhecia S. Lucas e vice versa. Por outro lado, partindo do princípio que S. Marcos foi o primeiro a escrever um Evangelho, onde não aparece o “evangelho da infância”, significa que nas primeiras comunidades cristãs o problema não era abordado. S. Paulo é o primeiro a escrever, cerca de quinze anos antes de S. Marcos, e deixa-nos apenas dois breves apontamentos sobre o nascimento de Jesus. Na carta aos Romanos 1,3 escreve que Jesus “nasceu da descendência de David segundo a carne, constituído Filho de Deus em poder, segundo o Espírito santificador pela ressurreição de entre os mortos”, e na carta aos Gálatas 4,4 escreve que “Deus enviou o seu filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adopção de filhos”.
Para S. Paulo só interessava a pessoa de Jesus como Salvador, mas nascido de uma mulher, sob o domínio da Lei, para acentuar que Jesus não é nenhum herói divino (aner theos), que caiu do céu, rodeado de esplendor e mistério. Ele é filho de uma mulher judia que vive na economia da “Lei de Moisés” e veio à terra para estabelecer a “economia do Espírito” em oposição à da Lei dos judeus. Só a economia do Espírito pode estabelecer a Fraternidade nova e a nova criação, rompendo com todas as culturas baseadas no sangue, família, pátria, circuncisão de Abraão.
É natural que os cristãos, sobretudo depois da derrocada de Jerusalém no ano 70, tenham começado a pensar seriamente sobre o nascimento do seu Salvador e tenham nascido muitas histórias divergentes. Nada do que está escrito nos Evangelhos é em directo, mas em diferido. S. Mateus e S. Lucas fornecem-nos narrativas vivas e coloridas, mas todas iluminadas pelo programa narrativo da salvação, segundo as promessas do Antigo Testamento e respectivas profecias. S. Mateus é bem explícito nesse programa narrativo ao apresentar quatro encenações arrancadas às Profecias: Mt 2,22: “Tudo isto aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito pelo profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho...”; Mt 5: “Eles responderam: Em Belém da Judeia, pois assim foi escrito pelo profeta...”; Mt 2, 15: “Assim se cumpriu o que o Senhor anunciou pelo profeta...; Mt 2, 23: “Assim se cumpriu o que foi anunciado pelos profetas...”. Não há contradição entre S. Mateus e S. Lucas porque o objetivo de ambos não é narrar cenas de história factual, mas cenas de história de salvação, a que os exegetas bíblicos classificam de midrache bíblico. O Antigo Testamento está cheio destas cenas. À luz da história da salvação, estas cenas valem tanto como se fossem narrativas de história factual. E no meio de todas elas há duas comuns a ambos os evangelistas: nascimento de Jesus de uma mulher virgem e nascimento em Belém. É verdade que alguns exegetas modernos, católicos e protestantes, colocam no mesmo pé de história “midráchica” todas as cenas “construídas” a partir das profecias. Mas se assim for como compreender as demais cenas, ao longo da vida “histórica” de Jesus, como é o caso da pregação na Galileia (Mt 4, 14) e dos milagres (Mt 8, 17). No entanto, o que mais interessa nestas cenas da infância é a realidade do seu simbolismo messiânico. Deixemos que os nosso presépios contenham a estrela, magos, pastores, anjos, mas não façamos disso a centralidade da mensagem. Não é verdade que quando somos invadidos por sentimento de um grande amor, ou medo, ou opção de vida, sobretudo de ordem espiritual, dizemos: “Não tenho palavras para descrever”? Foi o que aconteceu com Mateus e Lucas diante do “mistério” da incarnação de Jesus como Emanuel, Deus-connosco. Para serem compreendidos, apresentaram o “mistério” através de cenas catequéticas, criadas e construídas de acordo com a sua mensagem de fé em Jesus Cristo. escreveram em diferido, muitos anos depois do “mistério” da paixão, morte e ressurreição do Menino nascido em Belém, duma virgem mãe.
Fonte: Pe. Joaquim Carreira das Neves, OFM
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