terça-feira, 26 de abril de 2016

Orientações doutrinais para um discernimento pastoral

Reflexão sobre a Amoris Laetitia do Prof. Mons. Ángel Rodríguez Luño, decano da faculdade de teologia da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma
NCR COL REESE amoris 4.8
Publicamos abaixo um artigo enviado a ZENIT pelo Prof. Mons. Ángel Rodríguez Luño, decano da faculdade de teologia da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, em Roma.
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A Exortação Apostólica Amoris laetitia oferece as bases para dar um novo e muito necessário impulso à pastoral familiar em todos os seus aspectos. O capítulo VIII se re­fere às delicadas situações em que a debilidade hu­mana mais se evidencia. A linha proposta pelo Papa Francisco pode resumir-se com as palavras que compõem o título do capítulo: “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”. Somos convidados a evitar os julgamentos sumários e as atitudes de rechaço e exclusão, e a assumir, em vez disso, a tarefa de discernir as diferentes situações, empreendendo com os interessados um diálogo sincero e cheio de misericórdia. “Trata-se de um itinerário de acompanhamento e discernimento que ‘orienta estes fiéis na tomada de consciência da sua situação diante de Deus. O diálogo com o sacerdote, no foro interno, concorre para a formação dum juízo correto sobre aquilo que dificulta a possibilidade duma participação mais plena na vida da Igreja e sobre os passos que a podem favorecer e fazer crescer. Uma vez que na própria lei não há gradualidade (cfr. Fa­miliaris consor­tio, 34), este discernimento não poderá jamais prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade propostas pela Igreja. ‘”[1]. Parece útil recordar alguns pontos que convém ter em conta para que o processo de discernimento seja conforme o ensinamento da Igreja[2], o que o Santo Padre pressupõe e de modo algum desejou alterar.
Pelo que concerne aos sacramentos da Penitência e da Eucaristia, a Igreja ensinou sempre e em todo lugar que “quem tem consciência de estar em peca­do grave deve receber o sacramento da Reconciliação antes de comungar”[3]. A estrutura fundamental do sacramento da Reconciliação “compreende dois elementos igualmente essenciais: de um lado, os atos do homem que se converte sob a ação do Espírito Santo, a saber, a contrição, a confissão e a satisfação; de outro lado, a ação de Deus por intermédio da Igreja.”[4]. Se faltasse completamente a contrição perfeita ou imperfeita (atrição), que inclui o propósito de mudar de vida e evitar o pecado, os pecados não poderiam ser perdoados, e não obstante fosse dada a absolvição, esta seria inválida[5].
O processo de discernimento deve ser coerente também com a doutrina católica sobre a indissolubilidade do matrimônio, cujo valor e atualidade o Papa Fran­cisco enfatiza fortemente. A ideia de que as relações sexuais no contexto de uma segun­da união civil são lícitas implica que essa segunda união fosse considerada um verdadeiro matrimônio, e nesse caso se entraria em contradição objetiva com a doutrina sobre a indissolubilidade, segundo a qual o matrimônio válido e consumado não pode ser dissolvido, nem sequer pelo poder vicarial do Romano Pontífice[6]; se, em vez disso, se reconhecesse que a segunda união não é verdadeiro matrimônio, porque o verdadeiro matrimônio é e continua sendo somente o primeiro, então se aceitaria um estado e uma condição de vida que “contradizem objetivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e atuada na Eucaristia”[7]. Se, ademais, a vida more uxorio na segunda união fosse considerada moral­mente aceitável, se negaria o princípio fundamental da moral cristã, segundo o qual as relações sexuais são lícitas somente dentro do matrimônio legítimo. Por essa razão, a Carta da Congregação para a Doutrina da Fé de 14 de setembro de 1994 dizia: “O fiel que convive habitualmente more uxorio com uma pessoa que não é a legítima esposa ou o legítimo marido, não pode receber a comunhão eucarística. Caso aquele o considerasse possível, os pastores e os confessores – dada a gravidade da matéria e as exigências do bem espiritual da pessoa e do bem comum da Igreja – têm o grave dever de adverti-lo que tal juízo de consciência está em evidente contraste com a doutrina da Igreja”[8].
O Papa Francisco recorda justamente que podem existir ações gravemente imorais sob o ponto de vista objetivo que, no plano subjetivo e formal, não sejam imputáveis ou não o sejam plenamente, devido à ignorância, ao medo ou a outros ate­nuantes que a Igreja sempre levou em conta.  À luz desta possibilidade, não se poderia afirmar que quem vive em uma situação matrimonial assim chamada “irregu­lar” objetivamente grave esteja necessariamente em estado de pecado mortal[9]. A questão é delicada e difícil, porque sempre se reconheceu que “de internis neque Ecclesia iudicat”, sobre o esta­do mais íntimo da consciência nem sequer a Igreja pode julgar. Por isso, a Declaração do Conselho Pontifício para os Textos Legislativos acerca do cânon 915, citada pelo Papa Francisco[10], na qual se dizia que a proibição de receber a Eucaristia compreende também os fiéis divorciados que voltaram a casar, foi muito cuidadosa em preci­sar o que deve entender-se por pecado grave no contexto desse cânon. O texto da Declaração diz: “A fórmula ‘e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto’ é clara e deve ser compreendida de modo a não deformar o seu sentido, tornando a norma inaplicável. As três condições requeridas são: a) o pecado grave, entendido objetivamente, porque da imputabilidade subjetiva o ministro da Comunhão não poderia julgar; b) a perseverança obstinada, que significa a existência de uma situação objetiva de pecado que perdura no tempo e à qual a vontade do fiel não põe termo, não sendo necessários outros requisitos (atitude de desacato, admonição prévia, etc.) para que se verifique a situação na sua fundamental gravidade eclesial; c) o carácter manifesto da situação de pecado grave habitual.”[11].
A mesma Declaração esclarece que não se encontram nessa situação de pecado grave habitual os fiéis divorciados que voltaram a casar que, não podendo interromper a convivência por causas graves, se abstêm dos atos próprios dos cônjuges, permanecendo a obrigação de evitar o escândalo, posto que o fato de não viverem more uxorio é oculto[12]. Fora esse caso, em atenção pastoral a esses fiéis, será preciso considerar também que parece muito difícil que aqueles que vivem em uma segunda união tenham a certeza moral subjetiva do estado de graça, pois somente mediante a interpretação de sinais objetivos esse estado poderia ser conhecido pela própria consciência e pela do confessor. Ademais, seria preciso dis­tinguir entre uma verdadeira certeza moral subjetiva e um erro de consciência que o confessor tem a obrigação de corrigir, como se disse antes, já que na administração do sacramento o confessor é não somente pai e médico, mas também mestre e juiz, tarefas todas essas que certamente há de cumprir com a máxima misericórdia e delicadeza, e bus­cando antes de tudo o bem espiritual de quem busca a confissão.
Os aspectos doutrinais mencionados, que pertencem ao ensinamento multissecular de a Igreja, e muitos deles ao Magistério ordinário e universal, não devem im­pedir os sacerdotes de empenhar-se com espírito aberto e coração grande em um diálogo cordial de discernimento. Como escreveu o Papa Francisco, trata-se de “evitar o grave risco de mensagens equivocadas, como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente ‘exceções’, ou de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores. Quando uma pessoa responsável e discreta, que não pretende colocar os seus desejos acima do bem comum da Igreja, se encontra com um pastor que sabe reconhecer a seriedade da questão que tem entre mãos, evita-se o risco de que um certo discernimento leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla”[13]. Pelo contrário, sabendo que a variedade das circunstâncias particu­lares é muito grande, como muito grande é também sua complexidade, os princípios doutrinais antes mencionados deveriam ajudar a discernir o modo de ajudar às pesso­as interessadas em empreender um caminho de conversão que lhes conduza a uma maior integração na vida da Igreja e, quando seja possível, a recepção dos sacra­mentos da Penitência e da Eucaristia.
Mons. Angel Rodríguez Luño, Professor ordinário de teologia moral fondamental naPontificia Università della Santa Croce, em Roma.
Trad.: Viviane da Silva Varela.

[1]             Francisco, Exortação Apostólica Pós-sinoidal Amoris laetitia, 19-III-2016, n. 300. A nota interna é do n. 86 da Relação final do Sínodo de 2015.
[2]             O Santo Padre assim o disse explicitamente em Amoris laetitia, n. 300.
[3]             Catecismo da Igreja Católica, n. 1385.
[4]             Catecismo da Igreja Católica, n. 1448.
[5]             Cfr. Catecismo da Igreja Católica, nn. 1451-1453; Concilio de Trento, Sess. XIV,Doutrina do sacramento da penitência, cap. 4 (Dz-Hü 1676-1678).
[6]             São João Paulo II, em seu discurso à Rota Romana, de 21-I-2000, n. 8, declarou que essa doutrina é definitiva.
[7]             São João Paulo II, Exortação Apostólica Familiaris consortio, 22-XI-1981, n. 84.
[8]             Congregação para a Doctrina da Fé, Carta aos bispos da Igreja Católica acerca da recepção da Co­munhão eucarística por parte dos fiéis divorciados que voltaram a se casar, 14-IX-1994, n. 6.

[9]             Cfr. Francisco, Amoris laetitia, n. 301.
[10]           Cfr. Ibid., n. 302.
[11]           Conselho Pontifício para os Textos Legislativos, Declaração acerca da admissibilidade à Sagrada Comunhão dos divorciados que voltaram a se casar, 24-VI-2000, n. 2.
[12]           Cfr. ibidem. Não é demais ter em conta que não se pode exigir que os fiéis que vivem em uma se­gunda união civil garantam absolutamente que nunca mais terão relações. Basta que tenham o sin­cero e firme propósito de absterem-se. Às vezes somente um dos cônjuges pode ter esse propósito. Nesse caso, segundo as circunstâncias e a idade, pode ser suficiente para que possa receber os sacramentos, tratando sempre de evitar o escândalo.
[13]           Francisco, Amoris laetitia, n. 300.
Fonte: Zenit.

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