Queridos irmãos no episcopado,
Somos três bispos eméritos que, de acordo com o ensinamento do Concílio
Vaticano II, apesar de não sermos mais pastores de uma Igreja local,
somos sempre participantes do Colégio episcopal, e junto com o Papa, nos
sentimos responsáveis pela comunhão universal da Igreja Católica.
Alegrou-nos muito a eleição do Papa Francisco no pastoreio da Igreja,
pelas suas mensagens de renovação e conversão, com seus seguidos apelos a
uma maior simplicidade evangélica e maior zelo de amor pastoral por
toda a Igreja. Tocou-nos também a sua recente visita ao Brasil,
particularmente suas palavras aos jovens e aos bispos. Isso até nos
trouxe a memória do histórico Pacto das Catacumbas.
Será que nós bispos nos damos conta do que, teologicamente, significa
esse novo horizonte eclesial? No Brasil, em uma entrevista, o Papa
recordou a famosa máxima medieval: “Ecclesia semper renovanda”.
Por pensar nessa nossa responsabilidade como bispos da Igreja Católica,
nos permitimos esse gesto de confiança de lhes escrever essas
reflexões, com um pedido fraterno para que desenvolvamos um maior
diálogo a respeito.
1. A Teologia do Vaticano II sobre o ministério episcopal
O Decreto Christus Dominus dedica o 2º capítulo à relação entre bispo e
Igreja Particular. Cada Diocese é apresentada como “porção do Povo de
Deus” (não é mais apenas um território) e afirma que, “em cada Igreja
local está e opera verdadeiramente a Igreja de Cristo, una, santa,
católica e apostólica” (CD 11), pois toda Igreja local não é apenas um
pedaço de Igreja ou filial do Vaticano, mas é verdadeiramente Igreja de
Cristo e, assim a designa o Novo Testamento (LG 22). “Cada Igreja local é
congregada pelo Espírito Santo, por meio do Evangelho, tem sua
consistência própria no serviço da caridade, isto é, na missão de
transformar o mundo e testemunhar o Reino de Deus. Essa missão é
expressa na Eucaristia e nos sacramentos. Isso é vivido na comunhão com
seu pastor, o bispo”.
Essa teologia situa o bispo não acima ou fora de sua Igreja, mas como
cristão inserido no rebanho e com um ministério de serviço a seus
irmãos. É a partir dessa inserção que cada bispo, local ou emérito,
assim como os auxiliares e os que trabalham em funções pastorais sem
dioceses,todos, enquanto portadores do dom recebido de Deus na ordenação
são membros do Colégio Episcopal e responsáveis pela catolicidade da
Igreja.
2. A sinodalidade necessária no século XXI
A organização do papado como estrutura monárquica centralizada foi
instituída a partir do pontificado de Gregório VII, em 1078. Durante o
1º milênio do Cristianismo, o primado do bispo de Roma estava organizado
de forma mais colegial e a Igreja toda era mais sinodal.
O Concílio Vaticano II orientou a Igreja para a compreensão do
episcopado como um ministério colegial. Essa inovação encontrou, durante
o Concílio, a oposição de uma minoria inconformada. O assunto, na
verdade, não foi suficientemente amarrado. Além disso, o Código de
Direito Canônico, de 1983 e os documentos emanados pelo Vaticano, a
partir de então, não priorizaram a colegialidade, mas restringiram a sua
compreensão e criaram barreiras ao seu exercício. Isso foi em prol da
centralização e crescente poder da Cúria romana, em detrimento das
Conferências nacionais e continentais e do próprio Sínodo dos bispos,
este de caráter apenas consultivo e não deliberativo, sendo que tais
organismos detêm, junto com o Bispo de Roma, o supremo e pleno poder em
relação à Igreja inteira.
Agora, o Papa Francisco parece desejar restituir às estruturas da
Igreja Católica e a cada uma de nossas dioceses uma organização mais
sinodal e de comunhão colegiada. Nessa orientação, ele constituiu uma
comissão de cardeais de todos os continentes para estudar uma possível
reforma da Cúria Romana. Entretanto, para dar passos concretos e
eficientes nesse caminho – e que já está acontecendo – ele precisa da
nossa participação ativa e consciente. Devemos fazer isso como forma de
compreender a própria função de bispos, não como meros conselheiros e
auxiliares do papa, que o ajudam à medida que ele pede ou deseja e sim
como pastores, encarregados com o papa de zelar pela comunhão universal e
o cuidado de todas as Igrejas.
3. O cinquentenário do Concílio
Nesse momento histórico, que coincide também com o cinqüentenário do
Concílio Vaticano II, a primeira contribuição que podemos dar à Igreja é
assumir nossa missão de pastores que exercem o sacerdócio do Novo
Testamento, não como sacerdotes da antiga lei e sim, como profetas. Isso
nos obriga colaborar efetivamente com o bispo de Roma, expressando com
mais liberdade e autonomia nossa opinião sobre os assuntos que pedem uma
revisão pastoral e teológica. Se os bispos de todo o mundo exercessem
com mais liberdade e responsabilidade fraternas o dever do diálogo e
dessem sua opinião mais livre sobre vários assuntos, certamente, se
quebrariam certos tabus e a Igreja conseguiria retomar o diálogo com a
humanidade, que o Papa João XXIII iniciou e o Papa Francisco está
acenando.
A ocasião, pois, é de assumir o Concílio Vaticano II atualizado,
superar de uma vez por todas a tentação de Cristandade, viver dentro de
uma Igreja plural e pobre, de opção pelos pobres, uma eclesiologia de
participação, de libertação, de diaconia, de profecia, de martírio...
Uma Igreja explicitamente ecumênica, de fé e política, de integração da
Nossa América, reivindicando os plenos direitos da mulher, superando a
respeito os fechamentos advindos de uma eclesiologia equivocada.
Concluído o Concílio, alguns bispos – sendo muitos do Brasil –
celebraram o Pacto das Catacumbas de Santa Domitila. Eles foram seguidos
por aproximadamente 500 bispos nesse compromisso de radical e profunda
conversão pessoal. Foi assim que se inaugurou a recepção corajosa e
profética do Concílio.
Hoje, várias pessoas, em diversas partes do mundo, estão pensando num
novo Pacto das Catacumbas. Por isso, desejando contribuir com a reflexão
eclesial de vocês, enviamos anexo o texto original do Primeiro Pacto.
O clericalismo denunciado pelo Papa Francisco está sequestrando a
centralidade do Povo de Deus na compreensão de uma Igreja, cujos
membros, pelo batismo, são alçados à dignidade de “sacerdotes, profetas e
reis”. O mesmo clericalismo vem excluindo o protagonismo eclesial dos
leigos e leigas, fazendo o sacramento da ordem se sobrepor ao sacramento
do batismo e à radical igualdade em Cristo de todos os batizados e
batizadas.
Além disso, em um contexto de mundo no qual a maioria dos católicos
está nos países do sul (América Latina e África), se torna importante
dar à Igreja outros rostos além do costumeiro expresso na cultura
ocidental. Nos nossos países, é preciso ter a liberdade de
desocidentalizar a linguagem da fé e da liturgia latina, não para
criarmos uma Igreja diferente, mas para enriquecermos a catolicidade
eclesial.
Finalmente, está em jogo o nosso diálogo com o mundo. Está em questão
qual a imagem de Deus que damos ao mundo e o testemunhamos pelo nosso
modo de ser, pela linguagem de nossas celebrações e pela forma que toma
nossa pastoral. Esse ponto é o que deve mais nos preocupar e exigir
nossa atenção. Na Bíblia, para o Povo de Israel, “voltar ao primeiro
amor”, significava retomar a mística e a espiritualidade do Êxodo.
Para as nossas Igrejas da América Latina, “voltar ao primeiro amor” é
retomar a mística do Reino de Deus na caminhada junto com os pobres e a
serviço de sua libertação. Em nossas dioceses, as pastorais sociais não
podem ser meros apêndices da organização eclesial ou expressões menores
do nosso cuidado pastoral. Ao contrário, é o que nos constitui como
Igreja, assembleia reunida pelo Espírito para testemunhar que o Reino
está vindo e que de fato oramos e desejamos: venha o teu Reino!
Esta hora é, sem dúvida, sobretudo para nós bispos, com urgência, a
hora da ação. O Papa Francisco ao dirigir-se aos jovens na Jornada
Mundial e ao dar-lhes apoio nas suas mobilizações, assim se expressou:
“Quero que a Igreja saia às ruas”. Isso faz eco à entusiástica palavra
do apóstolo Paulo aos Romanos: “É hora de despertar, é hora e de vestir
as armas da luz” (13,11). Seja essa a nossa mística e nosso mais
profundo amor.
Abraços, com fraterna amizade,
Dom José Maria Pires, arcebispo emérito da Paraíba.
Dom Tomás Balduino, bispo emérito de Goiás.
Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia.
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