quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
O último encontro com um sábio humilde
No dia 14/02/2013 ocorreu o último encontro do Papa Bento XVI com o clero de Roma, tradicionalmente realizado na primeira quinta-feira da Quaresma. Esse ano foi bem especial, devido à “notícia do século”, como é chamada na Europa a renúncia do Papa ao ministério petrino. A diferença dos outros anos, o evento iniciou com uma peregrinação da Praça São Pedro até a tumba do príncipe dos Apóstolos, guiada pelo cardeal-vigário de Roma, Agostino Vallini. Ao iniciar, eu trazia na memória as recordações da Missa do dia anterior, a última celebrada pelo Papa, na qual ocorreu algo extraordinário: durante a procissão final, todos se despediram do Papa com incessáveis aplausos e lágrimas. E o Papa, repleto de uma paz transbordante, sorria e abençoava a todos docemente[i].
Durante a peregrinação, feita por mais de 1.000 padres de todo o mundo, cantava-se a ladainha dos santos, algo que me fez recordar o funeral do Beato João Paulo II, o último Conclave e o dia da minha Ordenação, quando nos prostramos diante de Deus, abandonando-nos à sua Providência, com a certeza de que não estamos só, pois os santos acompanham e intercedem pela Igreja. Ao chegar diante da tumba de Pedro, rezamos o Símbolo dos Apóstolos (Credo) em italiano. Era curioso que muitos líam o texto, por medo de se equivocar num momento tão solene; logo cantamos o Pai Nosso e Ave Regina caelorumem latim, dessa vez sem receio de errar.
Depois disso nos dirigimos à Aula Paulo VI para o esperado encontro; assistimos então à gravação da lectio divina do Papa aos seminaristas de Roma, ocorrida uma semana antes. Eram impressionantes as palavras de fé do Papa que dizia que devemos evitar tanto o falso pessimismo, o pensar que tudo vai mal e que a Igreja é uma árvore que está morrendo; quanto o falso otimismo, daqueles que vêm os Seminários, conventos e igrejas fechando e dizem que tudo vai bem. Em vez disso, os cristãos devem ser realistas e estar certos de que o futuro é nosso, é de Deus, e que a árvore da Igreja cresce sempre de novo, pois ela sempre se renova; por isso devemos servi-la com a consciência de que ela é de Deus, que a mantém e governa; os sacerdotes devem dizer simplesmente: “somos servos inúteis; fizemos o devíamos fazer” (Lc. 17, 10)[ii]. Essas palavras do Papa são uma grande lição de humildade não só para os padres e seminaristas, mas para todo cristão. De fato, essa foi a mais bela lição do “Papa-professor”, dada desde a cátedra da humildade, que se tornou uma imagem da Cruz de Cristo.
Então assistimos a maravilhosa homilia do Papa no dia anterior e por fim chegou o admirado Pontífice. Entrava no auditório com passos tranquilos e foi acolhido pelo rumor dos aplausos que não queriam terminar. O cardeal Vallini então fez um belíssimo discurso, cheio de emoção, que expressou perfeitamente os sentimentos dos que estavam presentes. Disse que estávamos ali como os anciãos de Éfeso que se despediram de São Paulo com abundantes lágrimas; e trazíamos no coração sentimentos contrastantes: tristeza e respeito, admiração e pesar, carinho e orgulho. Em tudo, porém, adorávamos a vontade de Deus e nos alegravámos por ter conosco uma vez mais o amado Papa. Disse ainda que os padres permanecerão sempre unidos ao doce e forte exemplo do Papa, que o seu Magistério é uma grande riqueza e que nos comprometíamos a rezar por ele nesses dias difíceis. Naquela hora foi impossível controlar a emoção. O cardeal pediu ao Papa então que nos orientasse uma última vez, no contexto do ano da fé, contando-nos as suas recordações e esperanças, ao participar do Concílio Vaticano II.
O Papa mais uma vez surpreendeu a todos porque mostrava a mesma serenidade do dia anterior, alegria e um extraordinário bom humor. Ele arrancou de nós boas gargalhadas[iii]. Disse que era grato pela nossa presença e oração e que mesmo agora que ele se retirava, sabia que através da oração estaria próximo de nós e que tinha a certeza de que também nós estaremos próximos a ele, embora ele passaria a estar escondido para o mundo. Essas palavras nos confortaram, mas nos fizeram sentir antecipadamente as saudades de um grande Papa.
Ele disse então que a sua idade não lhe tinha permitido preparar um verdadeiro discurso e que faria somente uma pequena chiacchierata,uma conversa informal, que na verdade durou mais de 40 minutos[iv].
E ele falou do Concílio Vaticano II, resumindo suas recordações pessoais, as principais discussões teológicas antes e durante o Concílio e os principais pontos doutrinais de cada documento publicado. Expôs as questões centrais da Liturgia, da Eclesiologia, do Ecumenismo e diálogo intereligioso, além de falar da relação da Palavra de Deus e o Magistério e da liberdade religiosa. Fez uma síntese extraordinária e surpreendeu a todos ao falar do “Concílio paralelo”, que foi o dos jornalistas que interpretavam o Concílio não a partir da fé, mas de categorias políticas. E disse que infelizmente esse foi o “Concílio” que se tornou popular naqueles anos difíceis e que o verdadeiro Concílio vem sendo aplicado aos poucos. Pergunto-me se no momento atual os que interpretam a renúncia do Papa a partir de categorias políticas não fazem o mesmo que fizeram os membros daquele falso Concílio.
O Papa nos contou algo que gerou boas risadas e que nos ajuda a entender a sua recente decisão. Disse que em 1961 o cardeal de Colônia, Frings, pediu ao professor mais jovem da Universidade (ele mesmo, professor desde 59) preparar um projeto de texto para uma conferência que seria dada em Gênova, sobre o Concílio e o pensamento moderno. O jovem Ratzinger fez o texto que agradou tanto ao cardeal, que o leu completamente na Itália. Logo depois o cardeal foi chamado pelo Papa João XXIII para uma conversa e pensou que perderia o seu título de cardeal, que usaria a “púrpura” naquele dia por última vez. Na audiência, porém, o Papa João XXII foi ao seu encontro, o abraçou com afeto e disse: “Obrigado, eminência, dissestes o que eu queria dizer, mas não tinha encontrado as palavras”.
A anedota é simpática e nos revela algo profundo, que certamente influenciou o jovem Ratzinger: a humildade do cardeal, que confiou ao mais jovem professor da Universidade (tinha 34 anos) uma importante tarefa; a humildade do Papa João XXIII de agradecer ao cardeal por ter expresso o que ele pensava, sem encontrar as justas palavras. Certamente o exemplo desses homens acompanha o Papa, assim como o do primeiro pároco de quem ele foi vigário, que certo dia levou a Comunhão a um doente e, ao retornar à casa, veio a falecer, pois também estava gravemene enfermo. Esses gestos admiráveis transmitidos ao Papa nos dão a certeza de que a Igreja é uma família, na qual o bem de uns repercute em todos.
O encontro foi um momento de muita graça, no qual o Papa transmitiu serenidade a todos e um forte testemuho de fé, de esperança e de humildade. Saímos de lá agradecidos a Deus e mais convictos de que a Igreja é de Deus, que somos apenas “servos inúteis”, pois só realizamos o bem que Deus nos permite fazer. O Papa Bento XVI, que se considera um “humilde servo na vinha do Senhor”, foi sempre para nós, padres, um exemplo de sabedoria, de vida radicada na Palavra de Deus e de humildade. Por isso estamos imensamente agradecidos a Deus por sua vida e ministério e confiantes de que Jesus Cristo, o Bom Pastor, continuará guiando a sua Igreja até a sua meta.
Pe. Anderson Alves, diocese de Petrópolis.
Fonte: Zenit.
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