Este artigo foi elaborado horas antes que a equipe médica do serviço de pediatria do complexo hospitalar universitário de Santiago, Espanha, retirasse a alimentação artificial da menina Andrea. A decisão foi fruto de um acordo entre os pediatras da criança e os pais, com a intermediação do juiz correspondente. A nosso parecer, a decisão se contrapõe ao que tinha sido anteriormente argumentado.
A situação de Andrea, internada desde junho no Hospital Clínico de Santiago e cujos pais solicitavam a interrupção do fornecimento de alimentação e nutrição à filha, gerou um tenso debate social [na Espanha], cuja dimensão jurídica parece conveniente tentar esclarecer.
Comecemos com os fatos. Após a internação de Andrea, o juizado competente, a pedido do hospital, examinou o plano terapêutico da menina, considerando-o conforme ao direito. Não houve depois mudanças substanciais na situação clínica de Andrea. A única novidade foi a emissão do relatório (nem preceptivo, nem vinculante) do comitê de ética assistencial do hospital, que avalizava os desejos dos pais da criança.
Na semana passada, a equipe médica de Andrea solicitou ao juizado uma reavaliação do plano terapêutico; os pais, por sua vez, solicitaram a retirada da alimentação e da hidratação fornecida à filha. O juiz ditou providência, pedindo informes pediátrico e forense sobre a situação clínica da menina.
Segundo fontes do hospital, Andrea respira por si mesma, recebe sedação paliativa e alimentação e hidratação pelo estômago. Se este suprimento fosse suspenso, Andrea morreria devido à ausência de comida e bebida, e não devido ao curso natural da sua doença.
O direito à renúncia a tratamento médico não tem como finalidade permitir a exigência da morte.
A família de Andrea solicitou a suspensão da nutrição exercendo um direito de renúncia a tratamento médico, reconhecido na lei orgânica 41/2002, de autonomia do paciente.
A primeira consideração a fazer é sobre a alimentação constituir um tratamento médico ou ser uma medida básica de cuidado. No segundo caso, a sua retirada não constituiria objeto de direito algum. Mesmo que se entenda tratar-se do primeiro caso, será de fato uma solicitação conforme ao direito?
A pergunta é pertinente, porque não basta apelar a um direito para agir licitamente. É imprescindível fazer bom uso dele. Quando agimos amparados por uma norma (direito à renúncia a tratamento médico), mas perseguimos um resultado proibido pelo ordenamento jurídico, o contrário a ele (apossar-nos da decisão de quando morremos, e, mais ainda, de quando morre outro de quem somos responsáveis juridicamente), a nossa ação se entende fraudulenta e não deve impedir a aplicação da norma que se tenta eludir (art. 6.4 do código civil espanhol).
É básico perguntar-se qual é a finalidade dos pais de Andrea ao exercerem em nome da filha o direito da renúncia a tratamento: se o essencial é suspender a alimentação ou que Andrea “deixe de sofrer”, o que, segundo os pais, só pode agora ser possível com sua morte. A renúncia a tratamento é um fim em si mesmo –e a morte uma consequência assumida, mas não buscada com a renúncia– ou um meio a serviço do fim de causar a morte?
A lei de autonomia do paciente estabelece, em seu ar. 11.3, que as instruções prévias não se cumprirão quando contrárias ao ordenamento jurídico ou à lex artis. Não pode ser de outra maneira neste caso, em que, ademais, se trata da vida de uma menor, sobre a qual o Estado tem especial dever de garantia.
Nosso Estado de Direito não considera lícitas, nem menos exigíveis em direito, as decisões em torno à disposição da própria vida (ex art. 143 do Código Penal). Obviamente, menos ainda as que têm por objeto a vida de um terceiro, por mais que este fique sob a nossa responsabilidade jurídica. Não se pode exercer o direito de renúncia a tratamento para se conseguir uma finalidade ilícita.
Os casos de Marcos Alegre e Vincent Lambert: a renúncia a tratamento não está “acima” do direito à vida
Não é adequado, em minha opinião, trazer a colação o caso de Marcos Alegre, o menino de treze anos, testemunha de Jeová, que morreu por se negar a receber uma transfusão de sangue.
A sentença do Tribunal Constitucional 154/2002, que amparou seus padres, não constitui uma prova da preeminência do direito à renúncia a tratamento médico "acima do direito à vida". Não se julgava Marcos nem a sua firme negativa ao tratamento. Ponderava-se se a negativa dos pais a convencê-lo e a assinar o consentimento era amparada pelo seu direito à liberdade religiosa. Assim foi entendido pelo Tribunal. Violentar as crenças dos pais teria sido não só ilícito, mas também gratuito: a equipe médica já contava com a autorização judicial necessária para fazer a transfusão.
É relevante recordar, a propósito do caso de Marcos, que, a partir dos doze anos, o menor deve ser informado da sua situação clínica, dentro da sua capacidade de entender, e deve ser ouvido antes de se tomarem as decisões que o afetam diretamente. Ignoramos se Andrea está em situação de entender o seu estado de saúde e a alternativa que seus pais colocam para a equipe médica. Se fosse o caso, e se pensasse em cumprir a vontade dos pais, alguém (os próprios pais junto à equipe médica) deveria explicar à menina que outros decidiram retirar-lhe a alimentação e a hidratação e que isto provocará a sua morte. Parece difícil conceber que se trate de uma informação relativa ao exercício de um direito da menor.
Também foi levantado neste debate o caso Lambert. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos sentenciou em junho que não seria contrária à Convenção de Roma a hipotética execução da decisão do Conselho de Estado francês que autoriza a retirada da alimentação e da nutrição de Lambert.
Mas a decisão do TEDH se baseia no reconhecimento da margem de apreciação do Estado, um argumento de impossível aplicação pelo juiz competente no caso de Andrea, já que esse argumento só entra em jogo quando não existe consenso no âmbito europeu sobre a questão de fundo. Então, o TEDH respeita a solução adotada pelo Estado envolvido no caso. Além disto, a sentença Lambert não só foi adotada com muito beligerante opinião dissidente de cinco magistrados, mas tem ainda difícil integração no próprio case-law do Tribunal que, em sentenças anteriores (vid., Hass v. Suiza, 2011), afirmou que a decisão de morrer, entendida como direito, é contrária ao art. 2 da Convenção de Roma (obrigação do Estado de velar pela garantia da vida dos cidadãos).
Os profissionais da saúde poderiam objetar, mas só se estivessem juridicamente obrigados a retirar a alimentação de Andrea, o que não é o caso.
Também se afirma que os médicos não poderiam negar-se ao cumprimento da vontade dos pais de Andrea, já que a lei 5/2015, de direitos e garantias da dignidade das pessoas doentes terminais da comunidade galega, não contempla a possibilidade de objeção de consciência para os profissionais da saúde na tomada de decisões sobre o final da vida. Ocorre, porém, que a objeção de consciência, por definição, só pode ser exercida por um cidadão sobre o qual recaia um dever jurídico efetivo que o obrigue diretamente a realizar um comportamento ativo ou omissivo que repele a sua consciência. Os médicos não podem objetar, mas não porque a lei não lhes atribua este direito (o que não é preciso, porque se trata de um direito fundamental), mas porque não têm a que objetar: não existe um dever jurídico de cumprir a vontade dos pais neste caso. Existe, isto sim, o dever de agir conforme o ordenamento jurídico e a lex artis.
Marta Albert
Professora de Filosofia do Direito
Observatório de Bioética
Universidade Católica de Valência
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