terça-feira, 31 de julho de 2012
Vida humana e globalização jurídica
Rafael Navarro-Valls
O processo da globalização da economia, da cultura, da política, etc., também atingiu com especial vigor as áreas do Direito. Neste âmbito, já não se fala de globalização jurídica no singular, mas de globalizações jurídicas: é preciso analisar cada uma das suas vertentes para se perceber a força cabal do seu impacto.
Um setor em que a globalização jurídica atinge especial intensidade é o dos direitos humanos, área em que não existem mais (nem devem existir) Estados “mônadas”, encerrados nas suas peculiaridades, e sim uma comunidade internacional que tem como protagonista a pessoa humana, mais do que o próprio Estado. É claro que existem alguns Estados, cada vez menos, que ainda resistem a este processo de globalização, mas isto se deve, basicamente, a uma espécie de postura defensiva para escapar de sentar-se no banco dos réus. Depois da Segunda Guerra Mundial, os direitos humanos se tornaram um ponto de não retorno na ordem internacional. Através das organizações internacionais, dos tratados e de outras formas de inter-relação e de cooperação internacional, foi-se formando o que chamamos de “subsistema jurídico-institucional”, que unifica o direito.
Esta é uma das razões por que o artigo 96 da constituição espanhola, bem como artigos equivalentes em outras muitas constituições nacionais, estabelece que os tratados internacionais validamente celebrados, uma vez publicados, farão parte do seu ordenamento interno. Este já era um princípio consagrado pelo Código Civil espanhol, na sua reforma de 1973-74, ao ordenar as fontes do direito (art. 1.5) e, na sua enunciação positiva, estabelecer que as normas jurídicas dos tratados passariam a integrar o ordenamento interno, mediante a sua íntegra publicação no boletim oficial do Estado.
Perdoem-me a elementar introdução. Talvez, porém, ela não seja desnecessária, se levarmos em conta o alvoroço provocado nos meios políticos espanhóis pelo anúncio do Ministro da Justiça de que a má formação fetal, na futura lei do aborto, não será motivo para se abortar. “Considero eticamente inconcebível que tenhamos convivido durante tanto tempo com esta legislação”, arrematou.
Para entendermos as palavras do ministro, precisamos remontar à lei espanhola anterior sobre o aborto, de 1985, precedida de uma sentença do tribunal constitucional que declarou parcialmente inconstitucional a lei promulgada em 1983. Nesta sentença, a inconstitucionalidade não se estendia ao aborto eugênico. A razão mais provável é que, ao ser ditada a sentença de 1983, era evidente a insuficiência de prestações estatais e sociais voltadas a paliar as situações geradas em casos de incapacidade ou deficiência.
Entretanto, quando se promulgou a atual lei espanhola do aborto, de março de 2010, a situação tinha mudado radicalmente. Por um lado, o crescente desenvolvimento do Estado Social, singularmente sensível à assistência e à atenção dos deficientes, torna as previsões desta lei (“possíveis graves anomalias no feto”) menos justificáveis na sua proporcionalidade. Por outro lado, em 13 de dezembro de 2006, foi aprovada a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em que, de modo contundente, o artigo 10º afirmava: “Os Estados-Partes reafirmam o direito inerente à vida de todos os seres humanos e adotarão todas as medidas necessárias para garantir o efetivo exercício deste direito por parte das pessoas com disfunção em igualdade de condições com as outras”.
Este convênio foi incorporado ao nosso direito interno, através do processo de globalização antes descrito, no dia 3 de maio de 2008. Provavelmente, esta é a razão que levou o Comitê Espanhol de Representantes de Pessoas com Deficiências (CERMI), a reiterar que o aborto eugênico “parte da premissa” de que a vida das pessoas portadoras de deficiências é “menos valiosa que a do resto, e por este motivo pode ser aplicado a elas um tratamento desigual, que implica uma clara discriminação”. Daí o fato de que a ONU, em setembro de 2011 (Comitê sobre os direitos das pessoas com deficiências, organismo da ONU encarregado de velar pelo cumprimento do convênio), recomendou à Espanha a derrogação de qualquer suposto discriminatório por motivos de incapacidade em relação à regulação do aborto, por ser contraditório e vulnerar a convenção internacional.
Bastaria, na realidade, uma interpretação rigorosa da constituição espanhola vigente para entender que a grave desproteção do nascituro afetado por anomalias graves, tal como regulamentado na vigente lei de aborto espanhola, fere diretamente os artigos 10º (princípio da dignidade humana) e 14 (princípio da igualdade e da não discriminação) do texto constitucional.
Mas a situação jurídica dessa desproteção se torna insustentável quando se observa que o próprio artigo 4º da lei espanhola 39/2006, de 14 de dezembro, de Promoção da Autonomia Pessoal e de Atenção às Pessoas em Situação de Dependência, bem como o artigo 10º da já mencionada convenção internacional sobre deficiências e o processo de globalização jurídica mundial dos direitos das pessoas com necessidades especiais, impõem que os poderes públicos garantam os direitos humanos e as liberdades fundamentais, entre elas o direito à vida, de que os portadores de deficiências são titulares. Daí a minha solidariedade para com a perplexidade do ministro espanhol da Justiça diante da situação atual da legislação espanhola.
Fonte: ZENIT
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